Com o personagem Míchkin, Dostoiévski observa que é mediante a consciência dos instantes que antecedem a morte, que o tempo da vida produz a escuta da eternidade. Nesse sentido, o mais belo sentimento de vida e de autoconsciência se produz por esta escuta. Em um momento belíssimo, Míchkin relata o sentimento de um condenado diante do horror à morte. É por esta razão que Míchkin calcula cada instante, pois vê o milagre da vida que se manifesta como vontade, força e paixão:
Nessa perspectiva, o tema da vida em contraposição à morte, emerge na obra dostoievskiana como possibilidade de valorização da existência como valor supremo. Isto aponta para a dimensão de futuro, diferente do indivíduo que vive somente para o instante, cujo sintoma é precisamente a “imediatidade” de toda a personalidade egóica.
Sob este aspecto, também em Kierkegaard vemos que toda a paixão implica também o sofrimento. Tanto em Kierkegaard quanto em Dostoiévski, existir implica paixão, interioridade e nesse sentido é um eterno emergir, é estar lançado, onde o sentido nunca estará dado. Nesse sentido, o instante é sempre decisivo, pois é aí que a liberdade se manifesta como fonte de realização do espírito, enquanto doação para o mundo. Podemos constatar a dimensão da liberdade dos indivíduos, que Kierkegaard e Dostoiévski tratam como a repetição, ou melhor, a experiência empírica da impossibilidade de se repetir o instante vivido. É a dimensão radical de nossa existência, ou seja, em que somos confrontados com o instante (que é o acontecimento) e que, por sua vez, não se repete. Segue daí a importância do instante enquanto possibilidade de escolha e decisão. Sob este aspecto Kierkegaard profere:
Vê só, no instante grandioso do entusiasmo, aí mora a eternidade, mas quando então o tempo inicia a sua atividade inquieta, quando avança sempre mais; então, não se afastar do entusiasmo com o tempo, mas seguir apressadamente com a velocidade do tempo e contudo vagarosamente, com a demora da eternidade! (KIERKEGAARD, 2005, p. 159).
O presente é o eterno, o “instante” em que o tempo e a eternidade se tocam no vivido. O instante vivido, nesse sentido, não pode ser pensado como possibilidade de desperdício, ou seja, ele pode ser perdido justamente pelo desejo de tornar tudo instantâneo. Sob este aspecto, Kierkegaard nos alerta que, nos indivíduos, esse “desinteresse” só pode emergir de modo necessário, pois a arrogância, na certeza da posse da verdade produz o desespero como uma espécie de delírio da completude. Sendo assim, a ausência de significados ocorre precisamente quando o instantâneo se torna tudo.
Em O idiota o paradoxo depositado no personagem de Míchkin aparece precisamente pelo fato de que o amor Ágape, capaz de salvar Nastácia de seu sofrimento, entra em confronto com a condição humana, justamente por sua impossibilidade de satisfazer o seu amor carnal por Agláia. Nesse sentido, inexoravelmente marcado pela condição humana, sua fragilidade se manifesta justamente na dicotomia entre a idealidade do amor universal e o próprio desejo, ou seja, entre Ágape e Eros. No príncipe Míchkin, a ambivalência é descrita entre o amor cristão que ele nutre por Nastácia e o amor carnal que ele deposita em Agláia. Aqui a tragicidade decorre do fato de que Míchkin já não consegue escolher entre o amor de Nastácia e Agláia.
Assim, as ventanias sociais e a profundidade dos maus e dos bons sentimentos nos personagens, nos levam ao final trágico que fará com que Míchkin volte ao estado de idiotia do qual se libertara na Suíça. Seu olhar amoroso é mal compreendido. Ele quer ajudar, mas ninguém quer ajuda. Todos estão condenados meramente à condição humana.
CONCLUSÃO
No tempo de um individualismo exacerbado em que vivemos, há quem diga que a suposição de um olhar amoroso é uma forma utópica de contemplar o mundo, uma vez que existe uma grande distância entre o real e o imaginário. Nesse sentido, somente um “idiota” teria a pretensão de ver o mundo fora do real, ou seja, do que está aí posto como determinado. A partir dessa premissa poderíamos questionar: O que é o real? Kierkegaard e Dostoiévski, certamente concordariam que é diante do possível que podemos ter a nossa própria concepção do real na arte. Se compreendemos que na arte da vida toda paixão implica também sofrimento, então o amor pode ser visto, ainda em nossos dias, não apenas como uma espécie de idiotia, mas como algo que emerge de nossa condição humana, enquanto horizonte de felicidade com o outro. Sob este aspecto, Kierkegaard recorda que no amor “a arte não está em dizê-lo, mas em fazê-lo” (KIERKEGAARD, 2005, p. 402).
Diante da tragicidade de O Idiota, é possível apontar para uma concepção de amor cristão que é própria de Dostoiévski. De um lado Ágape, o amor regido pela religiosidade, abarca a compaixão pelo próximo e as pretensões de universalidade. Sob este prisma, o amor é insistentemente questionado enquanto possibilidade de realização plena. De outro lado Eros, cuja paixão movimenta o desejo humano e se mostra capaz de salvar o indivíduo da fuga de si, pois somente na relação consigo mesmo, na consciência da própria incompletude, é que se abre a possibilidade de individuação, ou seja, de tornar-se “si mesmo”.
Diante da liberdade e do peso que a responsabilidade exerce sobre as escolhas, Kierkegaard e Dostoiévski apontam o caminho do amor em um sentido mais cristão, precisamente para que o indivíduo não se perca na descrença e não se entregue ao delírio de uma relação dual. No indivíduo, a carência de interioridade é uma manifestação do desespero, cujo sintoma é precisamente a falta de sentido para a existência.
Nesse sentido, se o desejo enquanto paixão é o que nos move, precisamente por que ele nos constitui, então, não ceder aos nossos desejos implica um pouco de cada uma das formas de amor (Eros, Philia, Ágape). Surge daí a possibilidade de manifestação de liberdade e da responsabilidade pelas próprias escolhas. Assim, o nosso desejo de plenitude, que não cessa de se inscrever enquanto desejo, emerge como possibilidade de sentido, pois a existência só faz sentido com o outro. Aqui o grande Outro, o Sagrado, possível de ser significado é o Outrem, presentificado na pessoa do semelhante, ou seja, não mais o segundo eu que ainda é apenas amor de si, mas o primeiro tu, o Outrem. Quanto a isso Kierkegaard já nos alertava, “[...] pois o próximo é o outro tu, ou bem exatamente o terceiro da igualdade. O outro si, o outro eu” (KIERKEGAARD, 2005, p. 73).
Enfim, se por um lado, podemos pensar que Kierkegaard e Dostoiévski trabalham em uma perspectiva extremamente contextual, ou seja, com o olhar voltado para o seu tempo, por outro, certamente há algo que eles têm a nos dizer ainda hoje. Nossos autores com certeza concordariam que a prática do olhar amoroso somente pode emergir de nossos próprios abismos, pois é precisamente essa luz que brilha no escuro, a nossa única possibilidade de horizonte.
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