domingo, 27 de maio de 2012

Sensibilidades distraídas

É mesmo incrível como sensibilidades distraídas podem retornar aos sujeitos de maneira artificiosa; até mesmo os mais doces indivíduos, quando desatentos, envenenam a si mesmos. Quando então, pelo próprio distanciamento do coração, ocorre esta espécie de surdez que sobrevém ao sujeito, a escuta possível é agora tão ameaçadora quanto o eco sombrio dos próprios abismos. E é assim que, por este distanciamento, nada pode ser visto senão por um olhar que é imediatamente transfigurado. O real é tão somente aborrecimento, expressão de repúdio e ódio que não se desvenda, mas que de algum modo está lá, consumindo as próprias entranhas. Eis então que já não há escuta; sequer se consegue falar. Grita-se, apenas, o que no íntimo é murmúrio: ausência mesma e desesperada de amor?



É que em nossos dias,



“O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas. (Fernando Pessoa, p.472)



Talvez pelo fato de que,



“Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.” (Fernando Pessoa, p.316)

PESSOA, Fernando, O Livro do Desassossego, Editora Schwarcz Ltda, Cia das Letras, 2011.