quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A ORIGEM DA OBRA DE ARTE - Martin Heidegger

         
RESUMO
Hermenêutica de “Ser e Tempo” pode ser entendida como uma leitura preliminar para a compreensão sobre o primado do conhecimento teórico da verdade e na mudança que se operou da ideia tradicional da verdade enquanto adequação entre intelecto e coisa. Em “Ser e Tempo” compreender o ser implica um deslocamento do conceito para tocar uma outra compreensão. Em que sentido? A partir de Heidegger a hermenêutica enquanto interpretação deixa de ser vista apenas sob a perspectiva do significado normativo e metodológico, para se tornar algo próprio. A interpretação hermenêutica está ligada à totalidade da experiência humana enquanto possibilidade de tarefa criadora, cuja mediação se dá pela linguagem nas suas várias formas de expressão.  Nessa perspectiva, a questão do sentido do ser é como uma espécie de prefácio para “A Origem da Obra de Arte” em que se abre a possibilidade de um diálogo do artista com o que seja a arte. Neste ensaio o questionamento sobre a obra é sobretudo o questionamento do que seja a verdade e a busca pelo originário é inicialmente pautada pelos pressupostos da metafísica. A própria questão sobre o sentido do ser, ou seja, a pergunta para além do sendo (ente) em sua totalidade constitui uma questão metafísica. Contudo, para o autor a questão do esquecimento do ser precisa ser buscada além do modo de conhecimento dominado pela metafísica e pela tecnologia. Sendo assim, proponho algumas questões norteadoras para as nossas reflexões: O que significa para Heidegger o originário verdadeiro? Há um lugar específico onde encontramos o originário? Do que se trata “a coisa” e qual a relação que podemos estabelecer com o pensamento de Nietzsche sobre o que seja a coisa?
Palavras chave: Verdade. Originário. Obra. Artista. Arte.

No capítulo intitulado A coisa e a obra, Heidegger traz uma questão que parece demonstrar a distinção entre o objeto e o ser, ou seja, há uma separação que pressupõe separados sujeito-objeto enquanto unidade de pensamento e ser. A partir da questão: “o que é a coisa enquanto é uma coisa?” Heidegger põe em evidência não apenas as propriedades de determinada coisa, ou seja, aquilo que nela é possível predicar como o gênero e a espécie, por exemplo, como também faz aqui novamente uma retomada aos gregos para buscar a origem do ser do sendo (ente) no sentido de presença: “Fala-se então do cerne das coisas. Os gregos devem ter nomeado isto to hypokeimenon[1].” (HEIDEGGER, 2010, p.51).
Compreender este resgate, no que se refere à origem do ser do sendo proposto por Heidegger, penso, requer antes um retorno em Aristóteles. No começo do Livro V das categorias, Aristóteles enuncia: “Substância (ousia), quando ela é dita em um sentido primeiro e principal, é o que não se diz de um sujeito (hypokeimenon) e o que não está em um sujeito (hypokeimenon)”. Sob este aspecto podemos compreender que em Aristóteles “substância” não se confunde com o sujeito[2], ou seja, já em Aristóteles há algo que o dizer não dá conta de predicar. Somente a (ousia 2ª) ligada ao gênero e a espécie pode ser dita. No que se refere a essa mudança interpretativa, afirma Heidegger:
O pensar romano assume as palavras gregas, traduzidas sem a experenciação igualmente originária que corresponda ao que elas dizem, sem a experiencial palavra grega. Com este traduzir começa a carência de chão firme do pensamento ocidental. (HEIDEGGER, 2010, p.53).
Sob este aspecto Heidegger entende que há muito tempo a verdade significa a adequação entre o objeto e a coisa. A pergunta pela verdade, no entanto, é a busca pela essência da verdade originária que Heidegger vai encontrar na palavra grega aletheia, ou seja, não esquecimento enquanto desvelamento. O verbo legein, de onde vem o substantivo logos, quer dizer uma ação que recolhe e o resultado da ação da colheita é o colhido, isto é, o logos enquanto nomeação é o ato de dizer algo. Sendo assim, “o desvelamento é para o pensamento o mais velado na existência grega, mas ao mesmo tempo, desde cedo, o determinante do que se presentifica em toda presença.” (HEIDEGGER, 2010, p.127). 
Do Logos originário presente em Heráclito, Heidegger parece resgatar o sentido do silêncio prévio a toda a palavra, ou seja, Logos é colheita/coleta, a unidade que precede todo o dizer. Nesse sentido, a obra enquanto verdade se dá no ouvir e silenciar, no velamento (cuidado) e desvelamento (aletheia), ou seja, como uma espécie de disputa de delimitação (vazio/nada) está aí para ser manifestada. O nada enquanto negação da totalidade do sendo (ente) é o absolutamente não-ente, a negatividade. Essa “região originária” é precisamente o que marca a enigmática presença/ausência e é também o lugar em que se enraíza a diferença, o corte, o rasgo que atravessa o ser. Neste ponto surge uma questão: qual o significado da negatividade e em que sentido tem relação com o que o autor entende por disputa entre clareira e velamento?  Sem a originária revelação do negativo na vida não há espaço para a liberdade, isto é, o negativo como uma pré-condição para a subjetividade. Sem o desvelar não há lugar para a diferença, instante mesmo em que a identidade é posta. A clareira, esse horizonte aberto, é precisamente o campo do possível, o instante em que a liberdade emerge como cuidado e esforço em relação à própria existência em suas possibilidades. O desvelo significa a realidade como verdade e não-verdade em que a “disputa” encontra aqui significação com as palavras Mundo e Terra.  Para o autor o Mundo é algo sempre indizível se considerarmos que estamos inexoravelmente condicionados à facticidade, ao limite nascimento e morte. Nesse sentido, é no vazio enquanto corte e cisão que acontece a disputa entre Mundo e Terra. A Terra, por sua vez, é o lugar em que vige a verdade da obra e também o lugar em que o homem funda o seu habitar no mundo. Em que sentido?  Se a Terra é o lugar em que vige a verdade da obra, então em que sentido ela está ligada a ideia de coisidade da coisa 
Do ponto de vista transcendente, o projeto de que fala Heidegger se dá no desvelo, presença silenciosa, enquanto velar: cuidado, doação, dedicação e vigilância, mas é também desejo e vontade.  Nessa perspectiva, “a terra, elevando-se e portanto, aspira a manter-se fechada em si mesma e a confiar tudo à sua lei. A disputa não é nenhuma cisão como um cindir de uma mera fenda, mas, sim, a disputa é a intimidade do co-pertencer-se dos combatentes.” (HEIDEGGER, 2010, p. 161).
Em “Nietzsche I”, no capítulo A embriaguez como estado estético, (p.89), Heidegger traz uma citação de O crepúsculo dos ídolos, que clarifica o que seja para Nietzsche a “embriaguez apolínea e dionisíaca” que emerge como uma espécie de pré-condição para a disputa:
Para a psicologia do artista. Para que haja a arte, para que haja um fazer e uma visualização estética, é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo a excitação da embriaguez sexual, a mais antiga e originária forma de embriaguez.  Do mesmo modo, a embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas condições metereológicas, por exemplo, a embriaguez primaveril; ou sob a influência de narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada. (HEIDEGGER, In. Nietzsche p. 122)

Também em O nascimento da tragédia, Nietzsche traz uma significação importante para o que seja a disputa e, aqui, o que seja em Heidegger a intimidade do co-pertencer-se dos combatentes. Sobre a dissonância musical presente na tragédia, diz Nietzsche:

[...] e o que é o homem, senão isso? – para poder viver essa dissonância de uma magnífica ilusão que escondesse dela mesma sua verdadeira natureza sob um véu de beleza. Essa é a verdadeira intenção artística de Apolo, sob cujo nome reunimos todas essas inumeráveis ilusões de bela aparência que tornam, a cada dia, a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante que se segue. Ao mesmo tempo, porém, desse fundamento de nossa existência, do substrato dionisíaco do mundo, não deve penetrar na consciência do indivíduo humano senão precisamente a exata medida com a qual é possível ao poder transfigurador apolíneo triunfar por seu turno de maneira que esses dois instintos de arte sejam obrigados a despregar suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo a lei de uma eqüidade eterna. (NIETZSCHE, 2006, p. 171)

 Do Logos originário dos gregos, Heidegger parece resgatar o sentido de “colher”, “reunir”, isto é, recolher o caráter denso e vigoroso do sagrado, ou seja, o existente enquanto sendo (ente) dá-se na escuta, no dizer do sagrado. Mediante o recolhimento do ser, o originário é esse não dizível, o sagrado, possível de ser dito no dizer (mediado) da obra.  Em que sentido? No capítulo A verdade e a arte, Heidegger inicia com a significativa afirmação: “O originário da obra de arte e do artista é a arte[3].” (HEIDEGGER, 2010, p.145). Aqui podemos refletir a relação entre o artista e a obra, ligada a ideia da disputa Mundo e Terra, ou seja, a realidade vigente da verdade da obra: a arte.  
Diante disso Heidegger faz pensar o acontecer poético-apropriante, ou seja, a arte acontece como poiesis[4] significa que a vida enquanto obra de arte consiste em pôr-se em obra da verdade.  Diz respeito a apropriação e está ligada a ordem da ação.  Nesse sentido, no que se refere à possibilidade de doação no desvelo da obra, Heidegger afirma que:
O desvelo da obra não isola os homens em suas vivências, mas os introduz na pertença da verdade que acontece na obra e assim fundamenta o ser para os outros e com os outros como o expor-se histórico do Entre-ser, a partir de sua referência ao desvelamento. (HEIDEGGER, 2010, p. 173).
Esta referência ao desvelamento está ligada ao logos humano em que o artista é como uma espécie de mediador e sob este aspecto sempre corre o risco de se perder nesse dizer resultante da própria mediação. A verdade que se mostra na obra, nesse sentido, jamais pode ser comprovada objetivamente a partir do sendo existente, pois
Não temos um saber direto do caráter de coisa e, se sabemos, é então apenas saber indeterminado, daí precisamos da obra, isso nos demonstra indiretamente que no ser-obra da obra, está em obra o acontecimento da verdade, a abertura do sendo. (HEIDEGGER, 2010, p.179).
A arte deixa a verdade aparecer através do sendo da obra enquanto um acontecer poético-apropriante. A obra ou o pôr-se em obra da obra, somente acontece por um “salto” da própria existência nas possibilidades fundamentais do ser do sendo em sua totalidade. No salto acontece o poético-ontológico, ou seja, na relação identidade e diferença é precisamente o instante em que a identidade é posta. Este instante átomo do tempo é como o repouso, ausência de movimento, mas contém em si a plenitude do tempo, ou seja, é pleno movente. “Segundo Heidegger” (!) a essência da identidade ocorre nesse “salto.” A essência da verdade é a liberdade enquanto possibilidade de escolha e disposição humana para tornar manifesto, isto é, velar e desvelar o sendo (ente) enquanto apropriação da verdade.
Enfim, pensar a questão do que seja a arte enquanto enigma que não pode ser resolvido em conceitos, quer dizer aqui primeiro que ela não pode ser dita, mas antes, significa uma tarefa do artista que é precisamente buscar ver o enigma. Para esta tarefa, portanto, antes de tudo o recolhimento, o silêncio prévio que antecede a colheita/coleta, ou seja, o instante do diálogo, da referência mútua em que o artista é tocado pela arte. Neste tocar e ser tocado se dá o acontecer da obra enquanto apropriação da verdade.   
Assim, se consegui realizar a leitura de acordo com o logos do diálogo proposto pelo autor, então entendo que nas primeiras páginas do ensaio, que trata justamente sobre a origem da obra de arte, Heidegger nos fornece uma chave reflexiva sobre os seus pressupostos ao enunciar que:

O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Do mesmo modo também nenhum dos dois porta sozinho o outro. Artista e obra são em-si e em sua mútua referência através de um terceiro, que é o primeiro, ou seja, através daquilo a partir de onde artista e obra de arte têm seu nome, através da arte. (HEIDEGGER, 2010, p. 37)
A arte, no entanto, permanece um enigma pelo qual estamos sempre em preparação, quer dizer, estamos nos esforçando, pois o lugar do originário é para o existente como no fragmento de Heráclito que diz apenas: “Aproximação.”
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[1] Hypokeimenon: sujeito lógico – linguagem -
[2] Sub-jectum: aquilo que jaz embaixo, um núcleo duro subjacente (ousia): substância. A substância contém dentro de si dois elementos constitutivos: um deles é a essência (forma) fator determinante, o outro é a matéria, aquilo em que a forma se realiza. Na modernidade substância: sujeito.
[3] Em Sören Kierkegaard, Séc. XIX: o amante, o amado e o amor.
[4] Poiesis diz aquele agir que doa sentido, ou seja, doa a voz que é a linguagem, porque nela o sagrado doando-se se diz. A voz do poeta é a voz do sagrado. Sem esta voz não há fala humana, não há sentido, não há linguagem, não há mundo, não há ético, não há humano.


REFERÊNCIAS:
COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
FLEIG, Mário. Ousia et hypokeimenon: les destins de l’imprédicable pour les élèves d’Aristote.São Leopoldo. PPG-Filosofia UNISINOS
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Tradução de Marco Antônio Casanova; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de Márcia de Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia; Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.





terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Simples assim: “eu sou” e.




Assim como a pedra é
igualmente o seu ponto.
Sinceridade, eles creem:
é dizer-se e pronto.
Resolvidos e francos, quiçá, generosos,
é simples assim: “eu sou” e.

Completude é "verdade", eles dizem:
Imutável e sem medo.
Não fosse o outro, inverdade,
mutável...
e apontam o dedo.
......

[...] “Quem se ousa proclamar sem falha, ou inocente,
Nunca falso ou ambíguo, é nisso que ele mente” (NEDEL, 2011).

“Devemos buscar a solução dos problemas primeiro em nós mesmos e em nosso próprio solo” (Schelling, 1991).