domingo, 5 de agosto de 2012

Kierkegaard «avant la lettre»

Em minhas leituras últimas, atualmente “Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão”, de Martin Heidegger, estou encontrando reflexões valiosas sobre o “ser do homem” e as possibilidades para uma existência que não apenas aquela que ele denomina “inautêntica”. Aqui é até possível brincar com a afirmação de que Kierkegaard, sem dúvida, leu Heidegger «avant la lettre», quero dizer, desconsiderando “Chronos” em seu aspecto cronológico/temporal.

Kierkegaard, em sua fina ironia, utiliza muito a expressão “palavrório” para distinguir o “dizer” apenas, do decisivo “agir” de fato. Heidegger trata, no sexto capítulo, da “inautenticidade” enquanto fuga do “instante” (como em Kierkegaard: sempre decisivo ao existente) e também da possibilidade de engajamento do ser-aí (sujeito) no mundo.
Aqui, portanto a proximidade nas reflexões:

[...] À medida que, para o entendimento vulgar, o que o ente é propriamente aponta para o que está simplesmente dado, ele não vê a autenticidade da existência senão no fato de a relação com a morte estar desde e sempre simplesmente dada em meio ao pensamento constante nela.
Já se considera desde o princípio nesta postura fundamental, da qual nenhum de nós tem o direito de se dizer livre, que o caráter fundamental da existência, do existir do homem, reside na “decisão”, mas que a decisão não é um estado simplesmente dado que eu tenho. Ao contrário, é ela que antes me tem. Todavia, a decisão enquanto tal sempre só é o que é enquanto “instante”, enquanto instante do agir real.” (HEIDEGGER, p. 338)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Cansaço


Sinto cansaço, uma fadiga imensa do pensamento banal: esse mesmo que distrai vidas de si mesmas.

                  É diante da própria certeza que apontam o dedo:

O que atrapalha a vida é a diferença,
o outro.


É nessa perspectiva talvez,
                                             que o poeta,
                                              sem medo, diz:

“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? (Fernando Pessoa, 1996).



É que esta “ausência”, irrefletido cotidiano é insistente e mesmo, sempre...
vidas abstratas,
 meramente egoísticas, convencidas de si mesmas,
mas alheias de si.

Será também por isso que segundo Kierkegaard “a diferença é um disfarce”? Para ele o retorno sobre si, quero dizer, olhar para si mesmo requer coragem, pois não acontece sem uma inicial tristeza consigo mesmo. Além do espanto, há agora uma certa lucidez que estremece...

e nas entranhas, 
somente clamor e murmúrio,“temor e tremor”.

 Depois, só o silêncio do nada que somos.

Eis então que surge a possibilidade:

"re-nascer"

                                           uma possibilidade.

Somos livres na mesma proporção em que também únicos responsáveis pelas próprias escolhas.







domingo, 27 de maio de 2012

Sensibilidades distraídas

É mesmo incrível como sensibilidades distraídas podem retornar aos sujeitos de maneira artificiosa; até mesmo os mais doces indivíduos, quando desatentos, envenenam a si mesmos. Quando então, pelo próprio distanciamento do coração, ocorre esta espécie de surdez que sobrevém ao sujeito, a escuta possível é agora tão ameaçadora quanto o eco sombrio dos próprios abismos. E é assim que, por este distanciamento, nada pode ser visto senão por um olhar que é imediatamente transfigurado. O real é tão somente aborrecimento, expressão de repúdio e ódio que não se desvenda, mas que de algum modo está lá, consumindo as próprias entranhas. Eis então que já não há escuta; sequer se consegue falar. Grita-se, apenas, o que no íntimo é murmúrio: ausência mesma e desesperada de amor?



É que em nossos dias,



“O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas. (Fernando Pessoa, p.472)



Talvez pelo fato de que,



“Estamos todos habituados a considerar-nos como primordialmente realidades mentais, e aos outros como diretamente realidades físicas; vagamente nos consideramos como gente física, para efeitos nos olhos dos outros; vagamente consideramos os outros como realidades mentais, mas só no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma, como nós para nós.” (Fernando Pessoa, p.316)

PESSOA, Fernando, O Livro do Desassossego, Editora Schwarcz Ltda, Cia das Letras, 2011.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Axiomata

“Hay que explicar las tradiciones escritas desde su verdad interior, y todas las tradiciones escritas juntas no pueden darle ninguna verdad interior si no la tiene”. (Lessing, p. 495)



Não sem ironia, o Axiomata X é um tratado de Lessing sobre a verdade interior pela qual se guia o homem que transcende e deixa atrás a letra. Em outras palavras,"verdade interior" não tem o mesmo significado de um enunciado lógico ou ainda apenas a dimensão gramatical. Tem a ver com a dimensão pragmática da verdade e está aqui intimamente ligada a ideia da virtude, ou seja, é algo "pessoal", vinculado ao campo da ação; uma pessoa que possui "atitude".


LESSING, G. Ephraim. Escritos Filosóficos, Edición preparada por Augustín Andreu Rodrigo, Editora Nacional, Clásicos para una biblioteca contemporânea, Madrid, (España), 1982.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Diferente do desejo, somente

Mais do que vontade e desejo ou apenas volúpia, é ainda algo outro o que me move. Não apenas um ímpeto diz muito sobre o que acende aqui dentro. O silêncio refletido grita e nele, tenho escutado mais. Por isso, talvez, na escuridão tudo pareça mais claro e intenso.

Então não me queira acorrentar com tua certeza da certeza, sempre tão objetiva e inerte, pois este algo outro que me move, saiba, é também ventania. Mais do que desejo e vontade, sou também intenso querer. Não um querer apenas, mas num esforço contínuo e inacabado, deste meu querer que quer, o entusiasmo é renovado no próprio ser.



“Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. (Fernando Pessoa)

Sendo assim,

“Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali? (Fernando Pessoa)



quarta-feira, 18 de abril de 2012

Maturidade, talvez...


Apesar de Chronos,
hoje,
Kairós orienta as minhas escolhas.



“[...] les yeux sont aveugles. Il fout chercher avec Le coeur” (Saint Exupéry)


sábado, 14 de abril de 2012

Nostalgia


Sou urgência; nostalgia angustiada do que ainda não vivi.


"Fugit irreparabile tempus" (Virgílio) Irreparavelmente foge o tempo...

terça-feira, 20 de março de 2012

Escritos Filosóficos: Lessing




El hombre más sábio de todos según una sentencia del Oráculo em la que éste se parece lo menos posible a si mismo, se esforzaba em recoger de esa temerária bandada, el prurito del saber:


“Insensatos mortales, lo que esta por encima de vosotros no es para vosotros.   Volved la mirada hacia vosotros mismos! Em vosotros mismos están las profundidades inexploradas em que os podeis perder com provecho! Escutad ahí os más secretos rincones! Aprended ahí qué es la debilidad y qué es la fuerza, los ocultos vericuetos y la abierta explosión de vustras pasiones! Levantad ahí el reino en que sois súbditos y reyes! Comprended y dominad ahí  lo único que debéis comprender y dominar: a vosotros mismos!”
Así exhortaba Socrates, o mejor, Dios por médio de Sócrates. (Lessing, p.126)




LESSING, G. Ephraim. Escritos filosóficos y teológicos; Edición preparada por Agustín Andreu Rodrigo, Editora Nacional, Madrid, Espanha, 1982

quarta-feira, 14 de março de 2012

Esforço


Quando o horizonte nos escapa para não deixar de ser apenas o que ele é: um horizonte; é preciso então recortar os traços, juntar os fragmentos para novamente reconstruir o todo, possível nosso de cada dia...

 
É preciso lembrar que somos esforço, também...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A ORIGEM DA OBRA DE ARTE - Martin Heidegger

         
RESUMO
Hermenêutica de “Ser e Tempo” pode ser entendida como uma leitura preliminar para a compreensão sobre o primado do conhecimento teórico da verdade e na mudança que se operou da ideia tradicional da verdade enquanto adequação entre intelecto e coisa. Em “Ser e Tempo” compreender o ser implica um deslocamento do conceito para tocar uma outra compreensão. Em que sentido? A partir de Heidegger a hermenêutica enquanto interpretação deixa de ser vista apenas sob a perspectiva do significado normativo e metodológico, para se tornar algo próprio. A interpretação hermenêutica está ligada à totalidade da experiência humana enquanto possibilidade de tarefa criadora, cuja mediação se dá pela linguagem nas suas várias formas de expressão.  Nessa perspectiva, a questão do sentido do ser é como uma espécie de prefácio para “A Origem da Obra de Arte” em que se abre a possibilidade de um diálogo do artista com o que seja a arte. Neste ensaio o questionamento sobre a obra é sobretudo o questionamento do que seja a verdade e a busca pelo originário é inicialmente pautada pelos pressupostos da metafísica. A própria questão sobre o sentido do ser, ou seja, a pergunta para além do sendo (ente) em sua totalidade constitui uma questão metafísica. Contudo, para o autor a questão do esquecimento do ser precisa ser buscada além do modo de conhecimento dominado pela metafísica e pela tecnologia. Sendo assim, proponho algumas questões norteadoras para as nossas reflexões: O que significa para Heidegger o originário verdadeiro? Há um lugar específico onde encontramos o originário? Do que se trata “a coisa” e qual a relação que podemos estabelecer com o pensamento de Nietzsche sobre o que seja a coisa?
Palavras chave: Verdade. Originário. Obra. Artista. Arte.

No capítulo intitulado A coisa e a obra, Heidegger traz uma questão que parece demonstrar a distinção entre o objeto e o ser, ou seja, há uma separação que pressupõe separados sujeito-objeto enquanto unidade de pensamento e ser. A partir da questão: “o que é a coisa enquanto é uma coisa?” Heidegger põe em evidência não apenas as propriedades de determinada coisa, ou seja, aquilo que nela é possível predicar como o gênero e a espécie, por exemplo, como também faz aqui novamente uma retomada aos gregos para buscar a origem do ser do sendo (ente) no sentido de presença: “Fala-se então do cerne das coisas. Os gregos devem ter nomeado isto to hypokeimenon[1].” (HEIDEGGER, 2010, p.51).
Compreender este resgate, no que se refere à origem do ser do sendo proposto por Heidegger, penso, requer antes um retorno em Aristóteles. No começo do Livro V das categorias, Aristóteles enuncia: “Substância (ousia), quando ela é dita em um sentido primeiro e principal, é o que não se diz de um sujeito (hypokeimenon) e o que não está em um sujeito (hypokeimenon)”. Sob este aspecto podemos compreender que em Aristóteles “substância” não se confunde com o sujeito[2], ou seja, já em Aristóteles há algo que o dizer não dá conta de predicar. Somente a (ousia 2ª) ligada ao gênero e a espécie pode ser dita. No que se refere a essa mudança interpretativa, afirma Heidegger:
O pensar romano assume as palavras gregas, traduzidas sem a experenciação igualmente originária que corresponda ao que elas dizem, sem a experiencial palavra grega. Com este traduzir começa a carência de chão firme do pensamento ocidental. (HEIDEGGER, 2010, p.53).
Sob este aspecto Heidegger entende que há muito tempo a verdade significa a adequação entre o objeto e a coisa. A pergunta pela verdade, no entanto, é a busca pela essência da verdade originária que Heidegger vai encontrar na palavra grega aletheia, ou seja, não esquecimento enquanto desvelamento. O verbo legein, de onde vem o substantivo logos, quer dizer uma ação que recolhe e o resultado da ação da colheita é o colhido, isto é, o logos enquanto nomeação é o ato de dizer algo. Sendo assim, “o desvelamento é para o pensamento o mais velado na existência grega, mas ao mesmo tempo, desde cedo, o determinante do que se presentifica em toda presença.” (HEIDEGGER, 2010, p.127). 
Do Logos originário presente em Heráclito, Heidegger parece resgatar o sentido do silêncio prévio a toda a palavra, ou seja, Logos é colheita/coleta, a unidade que precede todo o dizer. Nesse sentido, a obra enquanto verdade se dá no ouvir e silenciar, no velamento (cuidado) e desvelamento (aletheia), ou seja, como uma espécie de disputa de delimitação (vazio/nada) está aí para ser manifestada. O nada enquanto negação da totalidade do sendo (ente) é o absolutamente não-ente, a negatividade. Essa “região originária” é precisamente o que marca a enigmática presença/ausência e é também o lugar em que se enraíza a diferença, o corte, o rasgo que atravessa o ser. Neste ponto surge uma questão: qual o significado da negatividade e em que sentido tem relação com o que o autor entende por disputa entre clareira e velamento?  Sem a originária revelação do negativo na vida não há espaço para a liberdade, isto é, o negativo como uma pré-condição para a subjetividade. Sem o desvelar não há lugar para a diferença, instante mesmo em que a identidade é posta. A clareira, esse horizonte aberto, é precisamente o campo do possível, o instante em que a liberdade emerge como cuidado e esforço em relação à própria existência em suas possibilidades. O desvelo significa a realidade como verdade e não-verdade em que a “disputa” encontra aqui significação com as palavras Mundo e Terra.  Para o autor o Mundo é algo sempre indizível se considerarmos que estamos inexoravelmente condicionados à facticidade, ao limite nascimento e morte. Nesse sentido, é no vazio enquanto corte e cisão que acontece a disputa entre Mundo e Terra. A Terra, por sua vez, é o lugar em que vige a verdade da obra e também o lugar em que o homem funda o seu habitar no mundo. Em que sentido?  Se a Terra é o lugar em que vige a verdade da obra, então em que sentido ela está ligada a ideia de coisidade da coisa 
Do ponto de vista transcendente, o projeto de que fala Heidegger se dá no desvelo, presença silenciosa, enquanto velar: cuidado, doação, dedicação e vigilância, mas é também desejo e vontade.  Nessa perspectiva, “a terra, elevando-se e portanto, aspira a manter-se fechada em si mesma e a confiar tudo à sua lei. A disputa não é nenhuma cisão como um cindir de uma mera fenda, mas, sim, a disputa é a intimidade do co-pertencer-se dos combatentes.” (HEIDEGGER, 2010, p. 161).
Em “Nietzsche I”, no capítulo A embriaguez como estado estético, (p.89), Heidegger traz uma citação de O crepúsculo dos ídolos, que clarifica o que seja para Nietzsche a “embriaguez apolínea e dionisíaca” que emerge como uma espécie de pré-condição para a disputa:
Para a psicologia do artista. Para que haja a arte, para que haja um fazer e uma visualização estética, é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo a excitação da embriaguez sexual, a mais antiga e originária forma de embriaguez.  Do mesmo modo, a embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas condições metereológicas, por exemplo, a embriaguez primaveril; ou sob a influência de narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada. (HEIDEGGER, In. Nietzsche p. 122)

Também em O nascimento da tragédia, Nietzsche traz uma significação importante para o que seja a disputa e, aqui, o que seja em Heidegger a intimidade do co-pertencer-se dos combatentes. Sobre a dissonância musical presente na tragédia, diz Nietzsche:

[...] e o que é o homem, senão isso? – para poder viver essa dissonância de uma magnífica ilusão que escondesse dela mesma sua verdadeira natureza sob um véu de beleza. Essa é a verdadeira intenção artística de Apolo, sob cujo nome reunimos todas essas inumeráveis ilusões de bela aparência que tornam, a cada dia, a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante que se segue. Ao mesmo tempo, porém, desse fundamento de nossa existência, do substrato dionisíaco do mundo, não deve penetrar na consciência do indivíduo humano senão precisamente a exata medida com a qual é possível ao poder transfigurador apolíneo triunfar por seu turno de maneira que esses dois instintos de arte sejam obrigados a despregar suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo a lei de uma eqüidade eterna. (NIETZSCHE, 2006, p. 171)

 Do Logos originário dos gregos, Heidegger parece resgatar o sentido de “colher”, “reunir”, isto é, recolher o caráter denso e vigoroso do sagrado, ou seja, o existente enquanto sendo (ente) dá-se na escuta, no dizer do sagrado. Mediante o recolhimento do ser, o originário é esse não dizível, o sagrado, possível de ser dito no dizer (mediado) da obra.  Em que sentido? No capítulo A verdade e a arte, Heidegger inicia com a significativa afirmação: “O originário da obra de arte e do artista é a arte[3].” (HEIDEGGER, 2010, p.145). Aqui podemos refletir a relação entre o artista e a obra, ligada a ideia da disputa Mundo e Terra, ou seja, a realidade vigente da verdade da obra: a arte.  
Diante disso Heidegger faz pensar o acontecer poético-apropriante, ou seja, a arte acontece como poiesis[4] significa que a vida enquanto obra de arte consiste em pôr-se em obra da verdade.  Diz respeito a apropriação e está ligada a ordem da ação.  Nesse sentido, no que se refere à possibilidade de doação no desvelo da obra, Heidegger afirma que:
O desvelo da obra não isola os homens em suas vivências, mas os introduz na pertença da verdade que acontece na obra e assim fundamenta o ser para os outros e com os outros como o expor-se histórico do Entre-ser, a partir de sua referência ao desvelamento. (HEIDEGGER, 2010, p. 173).
Esta referência ao desvelamento está ligada ao logos humano em que o artista é como uma espécie de mediador e sob este aspecto sempre corre o risco de se perder nesse dizer resultante da própria mediação. A verdade que se mostra na obra, nesse sentido, jamais pode ser comprovada objetivamente a partir do sendo existente, pois
Não temos um saber direto do caráter de coisa e, se sabemos, é então apenas saber indeterminado, daí precisamos da obra, isso nos demonstra indiretamente que no ser-obra da obra, está em obra o acontecimento da verdade, a abertura do sendo. (HEIDEGGER, 2010, p.179).
A arte deixa a verdade aparecer através do sendo da obra enquanto um acontecer poético-apropriante. A obra ou o pôr-se em obra da obra, somente acontece por um “salto” da própria existência nas possibilidades fundamentais do ser do sendo em sua totalidade. No salto acontece o poético-ontológico, ou seja, na relação identidade e diferença é precisamente o instante em que a identidade é posta. Este instante átomo do tempo é como o repouso, ausência de movimento, mas contém em si a plenitude do tempo, ou seja, é pleno movente. “Segundo Heidegger” (!) a essência da identidade ocorre nesse “salto.” A essência da verdade é a liberdade enquanto possibilidade de escolha e disposição humana para tornar manifesto, isto é, velar e desvelar o sendo (ente) enquanto apropriação da verdade.
Enfim, pensar a questão do que seja a arte enquanto enigma que não pode ser resolvido em conceitos, quer dizer aqui primeiro que ela não pode ser dita, mas antes, significa uma tarefa do artista que é precisamente buscar ver o enigma. Para esta tarefa, portanto, antes de tudo o recolhimento, o silêncio prévio que antecede a colheita/coleta, ou seja, o instante do diálogo, da referência mútua em que o artista é tocado pela arte. Neste tocar e ser tocado se dá o acontecer da obra enquanto apropriação da verdade.   
Assim, se consegui realizar a leitura de acordo com o logos do diálogo proposto pelo autor, então entendo que nas primeiras páginas do ensaio, que trata justamente sobre a origem da obra de arte, Heidegger nos fornece uma chave reflexiva sobre os seus pressupostos ao enunciar que:

O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Do mesmo modo também nenhum dos dois porta sozinho o outro. Artista e obra são em-si e em sua mútua referência através de um terceiro, que é o primeiro, ou seja, através daquilo a partir de onde artista e obra de arte têm seu nome, através da arte. (HEIDEGGER, 2010, p. 37)
A arte, no entanto, permanece um enigma pelo qual estamos sempre em preparação, quer dizer, estamos nos esforçando, pois o lugar do originário é para o existente como no fragmento de Heráclito que diz apenas: “Aproximação.”
...........................

[1] Hypokeimenon: sujeito lógico – linguagem -
[2] Sub-jectum: aquilo que jaz embaixo, um núcleo duro subjacente (ousia): substância. A substância contém dentro de si dois elementos constitutivos: um deles é a essência (forma) fator determinante, o outro é a matéria, aquilo em que a forma se realiza. Na modernidade substância: sujeito.
[3] Em Sören Kierkegaard, Séc. XIX: o amante, o amado e o amor.
[4] Poiesis diz aquele agir que doa sentido, ou seja, doa a voz que é a linguagem, porque nela o sagrado doando-se se diz. A voz do poeta é a voz do sagrado. Sem esta voz não há fala humana, não há sentido, não há linguagem, não há mundo, não há ético, não há humano.


REFERÊNCIAS:
COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
FLEIG, Mário. Ousia et hypokeimenon: les destins de l’imprédicable pour les élèves d’Aristote.São Leopoldo. PPG-Filosofia UNISINOS
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Tradução de Marco Antônio Casanova; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de Márcia de Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia; Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.





terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Simples assim: “eu sou” e.




Assim como a pedra é
igualmente o seu ponto.
Sinceridade, eles creem:
é dizer-se e pronto.
Resolvidos e francos, quiçá, generosos,
é simples assim: “eu sou” e.

Completude é "verdade", eles dizem:
Imutável e sem medo.
Não fosse o outro, inverdade,
mutável...
e apontam o dedo.
......

[...] “Quem se ousa proclamar sem falha, ou inocente,
Nunca falso ou ambíguo, é nisso que ele mente” (NEDEL, 2011).

“Devemos buscar a solução dos problemas primeiro em nós mesmos e em nosso próprio solo” (Schelling, 1991).

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Quando a dúvida é agora a ironia dominada.

Vertigem

Este algo outro, avesso e inquieto, sempre
em busca de mais, o adverso
desejo...
Sussurra aos ouvidos, morada em meu ventre
e entranhas,
murmúrios...
No salto o instante: eu mesma;
não mais o reverso,
apenas.
...
Diferente da dúvida, a ironia dominada é guia para o caminho:

[...] Na dúvida, o sujeito quer constantemente ir ao objeto, e o seu infortúnio está em que o objeto foge constantemente diante dele. Na ironia, o sujeito quer constantemente afastar-se do objeto, o que ele consegue ao tomar consciência a cada instante de que o objeto não tem nenhuma realidade. Por isso, quando a ironia suspeita de que por trás do fenômeno tem de esconder-se algo de diferente daquilo que está no fenômeno, o cuidado da ironia é sempre que o sujeito se sinta livre, de modo que o fenômeno não adquira realidade para o sujeito. (KIERKEGAARD, O Conceito e Ironia, p.223)


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Vida Seca

Aos apreciadores do "verdadeiro belo literário", partilho, uma vez mais o dizer poético do professor Nedel:


Vida Seca


Quem se não satisfaz com menos que o ideal,
Por uma perfeição platônica enlevado,
Não fugirá de ser perpétuo torturado,
Roendo a falta como perda essencial.


O humano bem não foi jamais transcendental,
Porém composto de virtude e de pecado,
Um tecido com belo e feio misturado,
Nada que sinalize a perfeição final.


Desejo mais modesto, ao longo desta vida,
Torna a existência muito menos dolorida:
Calvários não terá de angústias nem de dor.


Quem despreza a mulher que a sorte lhe destina,
Por não ter a sonhada essência feminina,
Se condena a uma vida seca sem amor.


“Contentai-vos com o que tendes” (Hb 13,5).
“Beija aqueles que a sorte te destina” (Espanca, 2002, p.100).


NEDEL, José. A Vez do Verso: Sonetos, Edigal, Porto Alegre, RS, 2011, P.71.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Dois pólos.


Chuva lá fora, vida, reverbera
a plenitude da alma amargurada, tua.
Queres de mim a perfeição ou
será ainda espelhamento teu?  meu lamento, talvez.
Escolhas próprias responsabilizam, não as lamento.
Saibas, pois, bondade em mim é imitação, apenas. Não sou anjo. Sou dívida eterna. É em "minhas entranhas que Deus vive".
Meus demônios é aqui mesmo, em minha interioridade, que exorcizo.
Sou luta de contrários,
dois pólos.
Esforço, apenas.



Chuva mansa lá fora. Aqui, vigorosa vida. 
Nada seria sem partilha, construção, re-construção 
e esforço,
também.

............

Quem não ousa apostar num ente que é finito,
à espera de comparte ideal, não mais que mito,
Parte infeliz da vida, por não ter amado.
(Professor Nedel, p.67)

NEDEL, José. A Vez do Verso: sonetos, Edigal, 2011.

domingo, 8 de janeiro de 2012

DE LA SERVITUDE MODERNE - J.F BRIENT

Neste vídeo temos uma pequena mostra do filme “De La Servitude Moderne” (Da servidão moderna) de Jean-François Brient que trata precisamente sobre o sistema de mercado constituído na modernidade, reconhecido como “democrático.” Aqui a possibilidade inicial de refletir sobre si mesmo, quero dizer, sobre o próprio posicionamento e, quiçá “engajamento” sobre as questões sociais e políticas. “Da servidão moderna”: um bom caminho, talvez, para pensar alguns mecanismos de “escravidão voluntária”, ou seja, servidão consentida, característica das grandes massas. Aliás, algumas das falas presentes no filme parece remeter ao pensamento nietzschiano que, já no século XIX, referia as massas utilizando a expressão “rebanho”.
A questão, no entanto, não é aqui condenar os processos de evolução tecnológica, mas sim questionar: liberdade, o que é? afinal, quem está no comando?
Aqui, apenas um "instante", mas vale conferir o filme na íntegra.