terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A CONDIÇÃO HUMANA ENQUANTO DESEJO DE FELICIDADE: POSSIBILIDADE ÉTICA DE LIBERDADE E DE LIBERTAÇÃO.



Algumas considerações sobre a autonomia em nosso tempo.

Palavras chave: subjetividade, liberdade, libertação, autonomia, revolução ética.




[...] Os homens em geral julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque a todos é concedido ver, mas a poucos é dado perceber. Todos vêem o que tu aparentas ser, poucos percebem aquilo que tu és. E esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do estado. E, nas ações de todos os homens, e, sobretudo dos príncipes, onde não existe tribunal a quem recorrer, o que importa é o seu resultado. (O Príncipe, Maquiavel, Cap. XVIII, p. 87).
Nesses termos Maquiavel descreve os indivíduos de seu tempo e entendo que sob o ponto de vista do pragmatismo seus pressupostos aparecem de modo extremamente atual. Importante destacar que em seu livro, O Príncipe, o título aparece como endereçado a qualquer governante enquanto referência instauradora da lei, isto é, seja ele rei, imperador, duque, conde, etc. Sob este aspecto podemos pensar alguns reflexos que aparecem em nosso tempo, como por exemplo, no lugar em que a política, a economia e o mercado são pautados por um jogo de forças de interesses onde o útil e o vantajoso aparece em detrimento do ético. Em ambas as perspectivas os fins parecem justificar os meios; contudo, como reflexo desses pressupostos mesmos, produzidos pela modernidade, surgem novos impasses que nos vemos envolvidos. A partir dessa perspectiva, busco desenvolver algumas reflexões na tentativa de contextualizar com referenciais teóricos que apontam para alguns dos reflexos que o advento da modernidade produziu em nosso tempo. Sendo assim, minha proposta é tentar esboçar questões que envolvem a condição humana enquanto desejo de felicidade e a construção das subjetividades enquanto possibilidade ética de liberdade e de libertação no campo político, econômico e social. Diante disso, meu objetivo é também refletir sobre as formas de consciência que se mostram presentes, estabelecendo algumas relações entre a ética da necessidade e as condições de possibilidade para uma ética da solidariedade.

Diante disso, faremos um breve sobrevôo histórico, estabelecendo algumas relações sobre o que seja a idéia de autonomia no processo de mutação em que nos vemos inseridos. No texto Modernidade e Revolução, por exemplo, Pires[1] faz referência para um dado importante que marca o início das nossas discussões, qual seja: [...] “A modernidade, no contexto do século XVIII, aparece como um momento de rupturas, de descontinuidades.”. Como resultado de minhas pesquisas e das próprias limitações compreensivas, entendo que a humanidade construiu suas bases éticas, sociais e políticas no horizonte de um referente externo que se fundamentou pela idéia da exceção. Em Aristóteles, por exemplo, a idéia da exceção aparece precisamente no pressuposto do motor imóvel. Dos mitos até os filósofos gregos da antiguidade, por exemplo, é possível pensar que a origem da filosofia grega fez reviver a realidade primeva, ou seja, um referente outro que subjetivamente satisfazia as profundas necessidades transcendentes, as aspirações morais, as pressões e os imperativos de ordem social. Diante disso, a realidade se apropriava pela participação destes conhecimentos, uma vez que tudo o que não possuía um modelo, ou seja, que não revelasse um exemplo, perdia o sentido e a característica de realidade. Para os gregos a felicidade é pautada na vida ética, na busca pelo que é bom e justo para a comunidade. O verdadeiro político é o cidadão da polis, pois é o próprio que elabora um Estado moral e virtuoso. Podemos lembrar aqui, Hannah Arendt[2], por exemplo, que a respeito da Pólis grega nos afirmava:

[...] “A isonomia (ali) garantia a igualdade, não porque os homens nasceram ou cresceram iguais, mas, ao contrário, porque os homens não são iguais e precisam de uma instituição artificial, a Pólis, que, pela virtude de sua Nomos, os torna iguais.”[3]

Sob estes aspectos, podemos pensar que no contexto grego a desigualdade representava apenas uma situação inicial e que a sua transformação implicava, necessariamente, que cada indivíduo fizesse a sua parte.Para termos uma idéia do significado das rupturas mencionadas por Pires, cujos reflexos aparecem em nossa contemporaneidade, podemos lembrar aqui de Thomas Hobbes, por exemplo, em que cada indivíduo em estado de natureza tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos pensam somente na própria conservação e nos interesses pessoais. É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. Resumidamente, podemos caracterizar que para Hobbes só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito natural e absoluto que tem sobre todas as coisas, em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Somente a idéia do contrato pode garantir a ordem e é preciso considerar que não existe aí a intervenção de uma exigência moral, pois na idéia do comando o poder é sempre coercitivo. A esse respeito Pires nos esclarece que:

[...] “o homem hobbesiano faz uma escolha pela própria sobrevivência, renunciando a qualquer direito sobre si, transfere a governabilidade de si mesmo ao soberano pela ratio naturalis busca a paz. Qual paz? A paz da negação da subjetividade e da intersubjetividade, consequentemente.” (2004, p.167).

Sob estes aspectos, tanto em Hobbes quanto em Maquiavel é o corpo do rei que garante a lei, pois o soberano é o árbitro mediador e supremo, ou seja, o único capaz de legislar e punir dentro dos limites da força e do poder absoluto. Nesse sentido, mediante o Contrato que em Hobbes é um acordo dos indivíduos com o soberano, o corpo do rei não está dissociado do corpo artificial que é o Estado e que, por sua vez, é o lugar da exceção. Com isso podemos considerar que as rupturas provocadas tanto por Maquiavel quanto por Hobbes, por exemplo, produziram transformações significativas e complexas tanto na organização do singular quanto do coletivo, como nos afirma Pires, Na organização do poder, o processo tribal e a relação primitiva, pré-moderna, entre etnias e povos mergulha num outro oceano caudaloso com a construção do Estado-nação, em que o nível de vigilância, coordenação administrativa e industrialização assume funções determinantes na vida dos indivíduos. Apesar disso, porém, vemos que na constituição desse laço social, os indivíduos em suas subjetividades ainda encontram neste referente outro, o fundamento instaurador da lei, ou seja, o campo do social que abarca tanto a economia quanto a política mantém, mesmo que de maneira “forçada” (uma vez que totalitária e despótica) uma espécie de “incompletude consistente”. Outra característica da modernidade ocorre pelo fato de que com o desmoronamento da metafísica, nos tornamos filhos da ciência, ou seja, trocamos uma incerteza objetiva por uma certeza objetiva. Sob estes aspectos, vejamos o que significa, no entendimento de Lebrun[4], a idéia de consistência e de incompletude. Segundo Lebrun, na seqüência do trabalho de Jean De Munck, situa esse lugar lógico como um desafio para as transformações de nosso tempo. Vejamos o que ele nos diz a esse respeito:

[...] Passamos certamente, de um modo de funcionamento que se apresentava como consistente e incompleto para nos organizarmos, doravante, de acordo com um regime que se quer completo, mas que se faz inconsistente. (2008, p.99)
Não temos dúvidas de que a modernidade nos trouxe maravilhas no que se refere aos avanços tecnológicos e científicos. Podemos mencionar também o fato de que nunca se falou tanto sobre as subjetividades como em nosso tempo e isso poderia nos trazer resultados significativos sobre a idéia de liberdade e de autonomia. A questão que se coloca é o que está sendo levado em conta para dar significado para liberdade e para autonomia?Sob estes aspectos Fleig[5] acrescenta algo significativo, quando em seu texto Metapsicologia do sujeito moderno, nos afirma que:

[...] Enquanto na sociedade pré-moderna a subjetivação se fazia pela personalização, como pertença a uma coletividade que oferecia um nome, um título e um lugar social preestabelecidos e regulados pelos ideais de reproduzir a tradição, na modernidade se realiza o ideal de independência pelo surgimento de uma massa anônima de meros indivíduos. O individualismo como expressão do ideal de igualdade e liberdade só pode se afirmar enquanto opera o recalcamento da própria tradição onde se funda.

Sendo assim, podemos pressupor que a retomada da certeza enquanto pretensão de uma razão que dê conta de si jogou os indivíduos em um beco sem saída, qual seja: a ausência de um referente terceiro enquanto significante instaurador da lei. Sob este aspecto Fleig nos fala da autonomia dos sujeitos que aparece como uma [...] “das maiores conquistas da modernidade, inaugurada conceitualmente por Descartes a partir do seu princípio de recusar tudo que não esteja submetido ao exame da razão.” Sob este aspecto, em que medida é possível pensar que na pós-modernidade a idéia de autonomia possa ser entendida, como nos questiona Fleig: como um delírio dos sujeitos? Talvez, mediante o pressuposto de que tomamos o lugar da exceção e, nesse sentido, para podermos continuar existindo como sujeitos, mesmo sem nos darmos conta disso, novamente fomos capturados pela massa. Precisamente neste ponto em que se mostram alguns dos reflexos “negativos” das rupturas a partir da modernidade, Pires traz um ponto positivo enquanto possibilidade de significações que aparecem em nosso horizonte contemporâneo e que emerge como a tese de nossas discussões:
[...] já na virada do século XX para o XXI, demonstra novas razões de entendimento, via rede. Estamos “plugados” numa central de informações e, consequentemente, ligados num sistema mundial, cujo simbolismo de poder destruiu fronteiras imaginárias, ainda que mantenha cuidadosamente as fronteiras físicas.
Por outro lado, porém, podemos pensar que a antítese aparece pelo fato de que o discurso da ciência e da técnica que não está dissociado da política e do mercado passou a organizar a coletividade de modo que permitiu a passagem da idéia de universalidade para a globalização. Nesse sentido, é possível inferir que a partir da Revolução Francesa, pelo viés do pertencimento político, se instaurou uma sociedade em que cada indivíduo, mediante os direitos humanos tem o seu direito à fala. O que vemos? Estamos diante de uma economia coletiva em que parece ser obrigação de cada indivíduo aderir a esse conjunto que se mostra linear e paritário, cuja adesão, por sua vez, faz às vezes do reconhecimento sob a forma da impessoalidade. Sob esta perspectiva é possível entender que a democracia em ato se exerce apenas como uma representação formal, uma vez que são os indivíduos que elegem o lugar que deveria garantir qualidade de vida. Sabemos que somente a adesão de fato por parte dos indivíduos nas questões políticas, econômicas e sociais é o fundamento da democracia. Nesse sentido deveria se configurar sobre uma base ética, a idéia de liberdade, de libertação e de felicidade. O que vemos, ao contrário, é que o advento da democracia na modernidade construiu um imaginário social em que cada indivíduo se vê autônomo, ou seja, definitivamente livre da heteronomia[6] e, consequentemente, da responsabilização. Em outras palavras, não sou eu o responsável e se há um responsável, então ele que se vire. Sob este aspecto cabe citar Lebrun, quando nos afirma que: [...] Ora, ao se querer recusar toda a obrigação, o que acaba recusado é a própria organização; logo, tanto o político quanto a democracia. “Por conseguinte, é isso o que hoje não se pode admitir: que obrigação e liberdade são indissociáveis.” (p.118).

Conforme Lebrun é o regime simbólico de redes que emerge de um confronto de opiniões e de conversas entre os protagonistas que fornece em sua totalidade a última palavra. Nesse sentido, a vida coletiva se sustenta pela ordem que emerge dos indivíduos numa espécie de impessoalidade e não mais por uma ordem ética preestabelecida. Um dos reflexos da revolução virtual se mostra em determinados sites de relacionamentos, por exemplo, em que máscaras são criadas e personagens são inventados em detrimento do comprometimento e da responsabilização por si e pelo outro. Nesse sentido, vemos que a revolução virtual, determinante do advento da cibercultura, tanto pode ser um instrumento de libertação cultural no sentido em que nos aponta Pires quanto alienador, se pensado sob o ponto de vista dessa nova racionalidade regulada pelo mercado. Sob estes aspectos o conjunto de nossas regras éticas aparece seriamente afetado. Vemos assim que a modernidade trouxe uma outra compreensão sobre o que seja a liberdade, em que os indivíduos emancipados dos pressupostos metafísicos, se vêem também libertos das pressões da tradição e que em certo sentido, faz vínculo com um estado de anomia[7].

Segue daí o pressuposto de Lebrun de que a ausência de um referente outro, enquanto simbólico instaurador da lei parece ter desvinculado os indivíduos de suas obrigações com a coletividade como forma de significação e de referência hierárquica, seja da família, do Estado ou da Nação. Cabe ressaltar aqui, que não se trata da suposição de defender um retorno ao modelo anterior, mas sim de questionar em que medida os indivíduos e a coletividade estão implicados em impasses que a modernidade produziu e que nos vemos envolvidos. Sob estes aspectos, Lebrun questiona: Não podemos deixar de nos perguntar se o regime de que nos emancipamos era o único ‘eficiente’ ou se representava apenas uma modalidade concreta encontrada por nossos ancestrais, ainda que sem querer, para figurar e assumir o que é necessário ao húmus humano. É precisamente nesse ponto que vejo emergir o nosso grande desafio filosófico, quando entendemos, por exemplo, que somente mediante uma revolução ética, fundada na solidariedade, poderá produzir a libertação dos indivíduos. Sendo assim, vemos os impasses que se apresentam e nos inquietam de modo provocativo convocando-nos, necessariamente, da teoria à práxis. Nesse sentido, as abordagens aqui propostas ocorrem na tentativa de sondar algumas questões antropológicas e também sociológicas com o objetivo de compreender justamente o que ocorre na passagem do campo individual para o coletivo. Neste ponto faço uma citação de Pires que parece significar o que estou tentando expressar:

[...] Parece que a nossa relação não será a de Prometeu, uma vez que nenhum mago detém o segredo do sagrado no mundo da ciência e da vida. Também não será o protesto de Antígona, pois confundiu-se o privado com o público, de tal modo que o público foi apropriado privadamente e o privado foi violado publicamente. (2004, p.104).

Quando observamos como se manifestam hoje as relações entre pais e filhos, professores e alunos, eleitores e políticos, por exemplo, vemos alguns reflexos que resultam da ausência de questionamentos sobre um referente valorativo enquanto modelo de organização tanto subjetiva quanto social. Outra característica que parece pertinente em nosso tempo diz respeito à idéia de felicidade que aparece nos indivíduos como uma necessidade imediata. Em outras palavras, é preciso estar feliz o tempo todo e isso a qualquer preço, ou seja, menos à sujeição do outro. Sob estes aspectos vemos que o instantâneo está intimamente ligado ao objeto, do mesmo modo que associado à facilidade do descarte. Daí o pressuposto de que as relações humanas estão isentas de solidariedade, pois o outro passa a ser também objetivado, ou seja, o outro não é mais visto como a pessoa de meu semelhante. Com isso é possível pensar a dimensão das transformações que o consumo pode produzir no imaginário coletivo, pois vemos que se instaura aí a idéia de uma necessidade exacerbada. Paradoxalmente, é possível traçar aqui um outro aspecto dessas mesmas consciências que, por exemplo, se mostram solidárias nas calamidades públicas. Frente a esses paradigmas, parece importante distinguirmos o que seja a ética da necessidade e a relação que podemos estabelecer com a superação do preconceito. A esse respeito Pires nos traz um dado importante sobre o significado da ética da necessidade[8], uma vez que traz a compreensão conceitual sobre o que seja a libertação dos sujeitos, ligado a idéia da necessidade. Deixemos, portanto, que ela nos esclareça:

[...] É uma ética cujo fundamento é a superação da escassez sem um projeto emancipatório e sem um cuidado moral. É o oposto a ética da responsabilidade e da ética da solidariedade. (2004, p.26).

Em outro ponto, Pires estabelece as distinções entre a ética da necessidade e a ética da solidariedade, velamos o que ela nos diz:

[...] As questões tratadas acerca da ideologia permitem que se ressalte a diferença entre a ética da necessidade e a ética da solidariedade, como dois enfoques ideológicos, formas de consciência, presentes no mundo da vida. Enquanto o primeiro enfoque produz uma trama que encerra o sujeito no seu próprio limite, o segundo produz a emancipação na medida em que reforça o diálogo e a partilha, consolidando a intersubjetividade. (2004, p.57).

Paradoxalmente vemos que diferente da idéia da ética da solidariedade, o individualismo produziu uma necessidade exacerbada, que ultrapassa a idéia de garantia da sobrevivência, como por exemplo, a alimentação e a moradia. Talvez seja esta a razão pela qual vemos as pessoas tão solitárias, pois a suposição de uma felicidade instantânea, reivindicada a qualquer preço, deixa ver os impasses que o individualismo produziu. Neste ponto podemos perceber o quanto à lei do mercado, enquanto forma de liberalismo econômico, está intimamente ligada à confiança de uma auto-regulação que se mostra de maneira espontânea.
Diante dessa nova forma de olhar o mundo e que aparece explícita em nosso cotidiano, nosso desafio maior, me parece que está no pressuposto de que na modernidade a liberdade está relacionada com a idéia de libertação e aqui, especificamente, com vistas para a idéia de uma revolução ética, mesmo que a partir de um fundamento racional no sentido em que compreende Pires. Vejamos:

[...] Outra compreensão de modernidade está mais bem relacionada com liberdade e libertação, cujos pressupostos incidem no conceito de Revolução. A libertação estaria dirigida para a superação de preconceitos de qualquer espécie, uma vez que o conhecimento das Ciências e das Artes permite o alargamento do universo de compreensão além do cotidiano. (Modernidade e Revolução).

Mesmo que saibamos que muitas pessoas estão convencidas de que a liberdade traz em si a possibilidade de escolhas éticas e nesse sentido responsáveis, contraditoriamente vemos que a massa se auto-regula pelas imposições do liberalismo econômico. Nesse sentido, penso que não se trata aqui de generalizações, mas sim da expectativa de poder pensar as condições de possibilidade de uma revolução ética nas relações que se mostram em nosso cotidiano. Portanto, as discussões não possuem uma conotação de fatalismo, o que implicaria a refutação da crença na possibilidade de consciências reflexivas e críticas. Por sua vez, implicaria também no descrédito da justiça enquanto possibilidade eficaz de manutenção dos valores éticos para os cidadãos. Contudo, segue daí uma questão que me inquieta: Como pensar a idéia de liberdade que acreditamos ser possível enquanto libertadora no sentido positivo, quando na realidade o que vemos é que ela emerge nos indivíduos como uma possibilidade de autonomia sim, porém, pelo viés da desresponsabilização? Sob estes aspectos, na medida em que investigamos como interagem os particulares no universal, ou ainda, quando analisamos a relação do universal com os particulares, vemos que estamos passando do modelo da instituição para a ausência de instituição, da heteronomia para uma idéia de emancipação que traz a impessoalização como forma de isenção das responsabilidades. Como nos é dado ver, sabemos que a instituição enquanto idéia de poder único, já não consegue dar conta de produzir qualidade de vida para os cidadãos. Outra característica que aparece de maneira explícita é a corrupção dos próprios ordenamentos do poder cuja impunidade emerge como mais um sintoma da ausência de fundamentação ética e solidária.Neste ponto, é importante lembrar uma passagem da Ética da Necessidade e outros desafios, em que Pires situa o horizonte de suas discussões um dado bastante significativo, enquanto esclarecedor. Vejamos o que ela nos diz:



[...] É relevante salientar que o universo dessa discussão é movimentado pelo desejo de todos de que a democracia se efetive como criação e como construção dos sujeitos históricos, constituídos em povos e nações. O contrário disso produz uma patologia social, quando qualquer ordenamento de controle torna-se invasivo nos espaços do sujeito. (2004, p. 137).



Diante das reflexões até aqui apresentadas surge uma questão que insistentemente me acossa, qual seja: Se em nossa realidade a autoridade se manifesta pelo triunfo da democracia, cujo imperativo se manifesta pela lei de um mercado que constitui o fundamento de uma liberdade que se manifesta pela autonomia da vontade[9], então em que medida é possível pressupor o exercício da liberdade de maneira autônoma no sentido positivo? Como pressupor que nos regimes políticos e sociais estejam implicadas as questões éticas? O que move o filósofo em suas buscas por fundamentos e até mesmo a falta deles, está intimamente ligado a sua temporalidade e o contexto em que ele se vê implicado. Sendo assim, diante destas inquietações, fui conduzida ao pensamento de Caldera[10] em que considero importante ressaltar um ponto bastante significativo de seu pensamento que trata da questão da vontade na história, ou seja, o ser ontológico do homem possível de ser apreendido a partir da história. Sobre o ser histórico, esse movimento com vocação e vontade, Caldera nos afirma:

[...] O que o homem faz é parte daquilo que o homem é, mas também aquilo que o homem é deveria formar parte daquilo que ele faz. O fazer essencial ao ser humano e não apenas manifestação externa de seu ser, pois seu fazer é um estar sendo. [...] O ser do homem acontece na história e pela história, e esta, por seu lado, só se realiza através do desenvolvimento do ser. Há entre o ser e a história uma unidade dialética, fluída e inextricável. (p.44, 1985).

Em suas formulações Caldera deixa ver que o propósito do pensamento é a busca por uma validade filosófica que atinja as perspectivas do regional, do histórico e do universal, pois é nesse movimento que acontece o humano. Nesse sentido, também em Corbisier[11], vemos que ele traz a perspectiva de que é preciso pensar o universal na sua relação com o princípio particular (que somente é visto em ação, em contexto) e pensar como isso ocorre na práxis. Segue daí, outra questão que diz respeito a todos os indivíduos que tentam pensar as questões sociais, qual seja: em que sentido cabe ao filósofo eximir-se ou envolver-se com as questões sociais e políticas? Em concordância com a linha de raciocínio de Corbisier, penso que se o fundamento da filosofia consiste em uma crítica radical de todas as questões, então o filósofo não pode abster-se de uma crítica que se volte para as questões de seu próprio tempo em que estão aí implicados o campo social e o político. Sendo assim, quando o filósofo se exime, significa a própria negação de uma consciência crítica que se volte para a totalidade. Outro aspecto que considero importante no pensamento de Corbisier é que o fundamento da filosofia, desde a sua origem, não possui problemas próprios, ou seja, o foco da filosofia está justamente em problematizar, na perspectiva da totalidade, as questões que podem ser religiosas, estéticas ou científicas. Nessa perspectiva, vemos a importância do contexto histórico, cultural e social, uma vez que toda a técnica tomada como parte, isto é, retirada do todo, é sempre uma forma de abstração. Assim, enquanto focada numa perspectiva de totalidade, a filosofia não pode ser concebida por lidar com problemas puramente “filosóficos”, pois nesse sentido estaria tratando apenas de questões abstratas. Sendo assim, entendo que no horizonte não apenas do filósofo, mas de todo indivíduo, a possibilidade de um posicionamento engajado aparece sempre dentro dos limites de sua própria singularidade e do contexto em que ele se vê implicado. E isso deixa ver que embora estejamos todos, na verdade, sendo arrastados por constantes mudanças no campo do social e nesse sentido nos sentimos um tanto impotentes, isso não nos impede de atuarmos nas questões que aí se apresentam. Nesse sentido, quando assumimos as próprias responsabilidades, surge a possibilidade de identificar, questionar e evidenciar os desafios que o nosso tempo nos impõe. Essas mudanças constantes e graduais se deixam ver, por exemplo, pela falta de questionamentos por parte dos pais em relação a si mesmos, quando se isentam de questionar os próprios filhos, os professores de seus filhos e esses últimos, quando se eximem de questionar os políticos e assim sucessivamente. Nessa perspectiva, Corbisier parece contribuir de forma significativa quando diz que [...] O intelectual e, a rigor, o intelectual é o filósofo, é o único que pode transcender o condicionamento de classe, explicando-se, assim, que se recrutem os teóricos, pedagogos e ideólogos da revolução em todas as classes sociais, embora em muito maior número nas classes assalariadas. (1975, p.27).

Assim, gostaria de acrescentar que as reflexões até aqui apresentadas, não tem pretensões conclusivas. Talvez seja muito mais a expectativa de poder problematizar as minhas próprias limitações compreensivas. Penso que somente a paixão é capaz de mover-nos em direção a uma busca crítica e radical para estas questões, mesmo que não signifique afirmar que sejamos capazes de dar conta destes impasses. Entretanto, precisamente porque diz respeito às inquietações e necessidades do humano, são questões que perpassam desde a construção das subjetividades e que estão intimamente ligadas ao modo como as pessoas lidam no campo econômico, político e social. Neste ponto, cito Fleig que nos diz:

[...] observamos que os impasses sociais de nossa cultura, que recobrem impasses subjetivos, nos indicam os limites extremos da alma. Esses confins do sujeito moderno, enquanto bordas que fazem limites com aquilo que não se deixa inscrever e nem por isso cessa de nos acossar, articulam a metapsicologia do sujeito moderno.

Diante disso, vemos algumas implicações que os paradigmas exercem nas subjetividades de nosso tempo, sobretudo quando submetidas a um sistema simbólico cujo lugar da exceção parece vazio, ou seja, carente de referência que faça laço com a idéia de uma felicidade vinculada à virtude. Neste ponto permito-me citar Pires:

[...] ainda que haja consenso sobre a necessidade de ser feliz, não significa que todos tenham a mesma concepção de felicidade, pois o entendimento de uns é mais restrito do que a sabedoria de outros. (2004, p.85).

Assim, por compreender que somos seres de linguagem, portanto, simbólicos, penso que o sentido para a existência é sempre o resultado das significações que construímos sobre o mundo. A linguagem, enquanto o que nos diferencia das outras espécies deve ser justamente o que pode produzir a nossa emancipação e autonomia. Em seu texto O Olhar e a voz em tempos virtuais, Fleig nos diz que:

[...] a linguagem serve para manifestar o que convém e o que não convém, igual o que é justo e injusto; o próprio dos homens em relação aos outros seres vivos é que eles têm a sensação de bem e de mal, do justo e do injusto e outras coisas do mesmo gênero; e a comunidade (koinonia) destas coisas faz a habitação (oikia) e a cidade (pólis).

Nesse sentido, o modo como os significantes nos são transmitidos, está intimamente ligado ao modo como elaboramos os significados que deles resultam e que de algum modo reflete o nosso ser no mundo. Portanto, é diante dos paradigmas, dos questionamentos e do desejo de pensar com rigor as questões que dizem respeito às subjetividades implicadas no laço social, que evoco aqui uma breve história narrada por Lebrun e que diz respeito a nossa condição humana. Precisamente por compreender que toca em um ponto em que somos todos iguais e que não cessa de se inscrever. Também porque entendo que somos sujeitos de desejo, somos iguais na medida em que indistintamente aspiramos à felicidade, mesmo que por concepções diferentes. Vejamos a significação metafórica que a história nos proporciona:

[...] Há muito tempo, após uma batalha vitoriosa, um general acampava com seu exército para descansar ao pé de um morro. Ao levantar o olhar, ele vê um homem sentado nesse morro, logo, mais alto que ele. Cheio de cólera, ele sobre até o indivíduo para interpelá-lo: - “Mas quem é você para se permitir sentar acima de mim? – General, responde o homem, o senhor me pergunta quem sou sem me dizer quem o senhor é? – Mas eu sou o chefe deste exército que você está vendo lá! Replica o general. – E quem está acima do senhor? – o marechal é claro! – E acima do marechal? – Só o rei está acima do marechal? – E acima do rei? – Mas nada está acima do rei! Lança ainda, bastante irritado, o general. – Pois bem, eu sou esse nada”, diz o homem, indicando por aí o ponto em que somos todos iguais. (Lebrun, 2008).

Sendo assim, quando no homem o desejo não se torna perverso a felicidade passa a ser uma construção diária que somente é possível com vistas para a alteridade. A partir do pressuposto de que somos ponte e não meta, a felicidade está sempre à luz de um horizonte que, sendo sempre um horizonte, deixa ver a contingência, ou seja, o campo do possível. A possibilidade, por sua vez, nos dá a idéia da liberdade enquanto libertação, pois é no instante, sempre decisivo, que podemos escolher o futuro como possibilidade de participação histórica. Segue daí que também o nosso desejo de plenitude, que não cessa de se inscrever enquanto desejo, aparece como possibilidade de sentido, pois se a existência só faz sentido com o outro, então é justamente isso que nos responsabiliza, uma vez que o outro é também o semelhante. Aqui o grande Outro possível de ser significado é o outrem, presentificado na pessoa do semelhante, ou seja, não mais o segundo eu, que ainda é apenas o eu mesmo, mas o primeiro tu. Diante disso vemos o nosso grande desafio enquanto humanidade, pois somente consciências críticas e reflexivas parecem ser capazes de produzir uma revolução no que se refere às questões da virtude no humano.Enfim, penso que emerge a importância de refletirmos sobre a ordem que configura o processo de mutação que a modernidade produziu e que se mostra como impasses para o nosso tempo. Um caminho ético possível? Enquanto seres dotados de racionalidade, portanto, capazes de reflexão crítica, temos ainda muitas possibilidades. Em que medida? Este é, sem dúvida, o nosso desafio maior e precisamos estar atentos sobre os nossos “desejos” se pretendemos encontrar meios de garantir a sobrevivência do humano. Um bom começo, talvez, como nos alerta Pires, [...] “mudarmos dos enfrentamentos que destroem para os enfrentamentos que emancipam.” (2004, p.115).

Referências:



ARRUDA, José Jobson de Andrade, História Moderna e Contemporânea, São Paulo, Ática, 1978.


CALDERA, Alejandro Serrano, Filosofia e Crise Pela filosofia latino-americana, Petrópolis Vozes, 1985.


CORBISIER, Roland, Filosofia Política e Liberdade, Rio de Janeiro, RJ, Editora Paz e Terra S/A, 1975.


FLEIG, Mário, O Olhar e a voz em tempos virtuais, texto publicado na Revista Filosofia UNISINOS, 7(3):238-255, set/dez 2006.


______, Metapsicologia do Sujeito Moderno, texto publicado na revista Psicologia, reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 12, n. 3, 1999, p. 753-74.
_____, Autonomia na pós-modernidade: um delírio? – Caderno IHU Idéias.
HOBBES, Thomas, Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil, São Paulo, SP, Editora Martin Claret Ltda, 2008.
LEBRUN, Jean-Pierre, A Perversão Comum: viver juntos sem o outro, tradução Procópio Abreu de La perversion ordinaire: vivre ensemble sans autri – Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2008.
_______, O Futuro do Ódio, organizador Mário Fleig; tradução de João Fernando C. Corrêa, Porto Alegre, RS, CMC Editora, 2008.
MACHIAVELLI, Nicolo, O Príncipe, São Paulo, SP, Editora Escala, 2006.
PIRES, Maria Cecília, Ética da Necessidade e outros desafios, São Leopoldo, RS, Editora UNISINOS, 2004.


______, Modernidade e Revolução; texto, 2009.
PLATÃO, Diálogos, II volume: Fédon, Sofista, Político, tradução Dr.Jorge Paleikat e Cruz Costa, Editora Globo.



[1] Cecília Pires é professora de filosofia Política na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisisnos, com pesquisa e publicações nesta área.


[2] Hannah Arendt (Linden, 14 de Outubro de 1906 - Nova Iorque, 4 de Dezembro de 1975) foi uma teórica política alemã, muitas vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa designação. Emigrou para os Estados Unidos durante a ascensão do nazismo na Alemanha e tem como sua magnum opus o livro "Origens do Totalitarismo".


[3] H./arendt, Essai sur la révolution, Gallimard, coll.Tel, 1990, p.39. Apud, Lebrun, 2008.


[4] Jean-Pierre Lebrun é psicanalista e editou pela Companhia de Freud Editora a obra Um mundo sem limite.


[5] Mario Fleig possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia N Sra Medianeira (1973), graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1982), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Metafísica, atuando principalmente nos seguintes temas: Heidegger, hermenêutica, ontologia, linguagem, ética e psicanálise. Psicanalista, analista membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos.


[6] Do grego heteros (diversos) + Nomos (regras), a heteronomia é a característica da Norma Jurídica, que esclarece ser esta imponível à vontade do destinador.


[7] Anomia – palavra de origem grega – a + nomos; a significa ausência, privação, inexistência e nomos significa lei, norma; anomia= ausência de normas de conduta.
[8] O conceito de ética da necessidade é explicitado por Pires mediante a identificação de um estado de carência real de sujeitos ou de grupos sociais. Evidencia a racionalização das carências entre os excluídos sociais.


[9] Fleig, em seu texto Autonomia na pósmodernidade: um delírio? - distingue autonomia da vontade positiva, da autonomia da vontade negativa: Positivamente segundo a formulação de Kant que na busca por uma fundamentação da moral que não encontra na teoria Aristotélica da prudência e das virtudes, transforma a noção de liberdade de seu antecessor em autonomia da vontade no exercício da qual situa o imperativo categórico, como princípio supremo da moralidade. Negativamente, se define pela negação de qualquer heteronomia no campo da norma moral, ou seja, que o indivíduo possa agir por princípios que a própria razão se autodetermina e livre de qualquer determinação alheia. (...)



[10] Alejandro Serrano Caldera foi Embaixador da Nicarágua na ONU. Entre as obras destacamos: Filosofia e crise; Os dilemas da democracia; El fin de la historia: reaparición del mito; La unidad en la diversidad; El doble rostro de la postmodernidad. Atualmente é professor visitante em programas de pós-graduação de Filosofia e de Direito em universidades da América Central, França, Estados Unidos e Brasil.



[11] Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier nasceu na cidade de São Paulo, no dia 9 de outubro de 1914, Faleceu em 10 de fevereiro de 2005. Em 1936, bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Cursou a Faculdade de Filosofia de São Bento e a Faculdade de Filosofia do Estado. É um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, do qual foi diretor de Cursos e Conferências. Sob o patrocínio desse instituto e do Museu de Arte Moderna de São Paulo, lecionou Introdução Geral à Filosofia e Estética de Hegel. É um dos fundadores e foi o primeiro diretor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no qual lecionou Filosofia no Brasil e fez conferências sobre Cultura e Desenvolvimento, Nacionalismo e Desenvolvimento.




Nenhum comentário:

Postar um comentário