segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Friedrich Nietzsche - Implicações, influências e confluências: O Nascimento da Tragédia ou a Grécia e o pessimismo?

Dionísio (detalhe de mosaico em Antioquia.
No Ensaio de uma Autocrítica, apresentado em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche nos traz diversos questionamentos que apontam para o núcleo central do livro e a expectativa de uma profunda reflexão sobre a arte.
Sendo assim, meu propósito é tentar descrever um pouco do que penso ter apreendido sobre os aspectos que envolvem a estética nietzschiana, principalmente no que diz respeito aos pontos de vista que permeiam esse movimento que, através da arte, constitui o dizer algo. Sob a perspectiva de Nietzsche, refletir sobre as possibilidades da expressão artística, seus limites, a pretensão da “verdade”, em que medida ele aborda estas questões e quais as relações por ele estabelecidas.
Antes, porém, de entrarmos especificamente nas questões abordadas em O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, penso que é importante retomar a questão da “verdade” e de que modo ela é abordada por Nietzsche. Nesse sentido, na expectativa de uma contextualização, estarei me valendo de algumas leituras e interpretações.
Em A Gaia Ciência, por exemplo, percebemos um questionamento crítico sobre o valor da verdade e a noção do perspectivismo. Traz a reflexão de que em oposição ao conhecimento intelectualizado - em vista da vivência em sociedade com suas normas e ditames morais - o conhecimento é uma projeção do próprio ser para a interioridade, isto é, que sonda a vivência do próprio eu. Mediante o fato de que as palavras foram inventadas, elas não indicam um significado, mas sim impõem uma interpretação. Tudo é apenas superfície e, também, máscara, daí a necessidade de saber o que existe para ser interpretado.
Em O Nascimento da Tragédia, a arte é vista com este pano de fundo, ou seja, a crença de que não é possível viver com a verdade e que, por sua vez, a vontade de verdade já é uma pretensiosa suposição e, por isso, representa uma degradação. Nessa perspectiva, Nietzsche entende que a relação entre a arte e a verdade existe sempre uma discórdia. Segue daí a crítica ao platonismo e ao cristianismo, uma vez que o supra-sensível encontra-se em uma posição mais elevada e, portanto, retira da vida a sua força e a enfraquece. Podemos então pensar a arte como movimento contra o niilismo. E aqui, entender que Nietzsche está se referindo a um niilismo que teve sua origem na Grécia, mais precisamente a partir de Sócrates. A crítica se dá justamente pelo fato de que Sócrates, ao introduzir o universal, aponta para o aniquilamento do indivíduo. Temos então, de um lado, o ser que é dominado pelas “verdades”, de outro, a possibilidade de decisão que abarca ao mesmo tempo os deuses e os homens, o mundo e a terra. Para Nietzsche, aí reside o livre saber em que o homem se permite escolher, valorar, criar. Somente o homem e seu livre saber é capaz de decidir e determinar, ou seja, é o lugar da decisão.
Por sua vez, a crítica à cultura alemã ocorre pelo fato de que a arte tem como principal função tirar o olhar de horror das trevas e suscitar a aparência, isto é, suprimir as vontades e os prazeres através das distrações. Distrações que se fazem necessárias uma vez que a vida em sociedade exige, em nome da estabilidade social, uma opressiva regularidade de costumes. Em nome dessas “verdades”, a implacável repressão ao instinto de liberdade é necessária, uma vez que é perigosa para a manutenção da ordem estabelecida pelos Estados.
Após estas considerações e reflexões iniciais sobre o pensamento nietzschiano, cabe questionar: O que significa para Nietzsche o nascimento da tragédia no espírito da música? E em que medida as forças antagônicas de Apolo e Dionísio se implicam, entrelaçam e confluem?
Mediante a leitura do prefácio a Richard Wagner em O Nascimento da Tragédia, fica evidente que Nietzsche coloca Wagner no centro de suas esperanças em relação a uma arte que seja capaz de ir muito além de um mero passatempo. Nas palavras de Heidegger, em suas preleções sobre Nietzsche, podemos encontrar uma expressiva interpretação:


[...] O que cativou o jovem Nietzsche no homem de Richard Wagner e em sua obra foi esse arrebatamento que impelia para o todo a partir da embriaguez. No entanto, isso só foi possível porque algo no próprio Nietzsche veio de encontro a esse arrebatamento, aquilo que Nietzsche então denominou o dionisíaco. Todavia, como Wagner só buscava a mera intensificação do dionisíaco e a autodissipação em seu elemento, enquanto Nietzsche buscava agrupar as suas forças e conformá-lo, a fissura entre os dois também já estava previamente determinada. (2007, p.81).

Em Nietzsche, a arte deve desempenhar a função de elevar e estimular a vida. A vontade de poder, portanto, se revela como estimulante da beleza da vida, ou seja, é a própria manifestação da vida enquanto arte. Na concepção de Nietzsche o belo significa aquilo que agrada e podemos supor que o belo é aquilo que instaura algo, nos toca. Sob uma perspectiva psicológica, podemos pensar que está ligado aos nossos significados, ao que achamos de nós mesmos e do mundo. Diante disso, não é o objeto, a obra de arte que se revela a nós, ao contrário, o belo é requisitado por nós quando nos lançamos para além de nós mesmos. Em outras palavras, parece apontar para a idéia de que não é a vida que se revela a nós como verdade absoluta, mas nós que a significamos enquanto criação e construção. A arte, portanto, é entendida como uma força criativa do que vem a ser, uma potência criativa da própria vida. A transvaloração se dá justamente na vontade de poder que se manifesta através do estado corporal, ou seja, na vontade como paixão, como instinto que extravasa as forças vitais e as preserva. Mediante estas reflexões, é possível acrescentar aqui uma interpretação de Heidegger que parece aclarar estas afirmações:

[...] “Quando Nietzsche diz “psicologia”, ele sempre tem concomitantemente em vista o estado corporal (o elemento fisiológico)”. (2007, p. 88).
Através da produção artística, portanto, podemos visualizar a essência do artista e, por esta razão, na compreensão de Nietzsche não podemos ignorar que a origem da arte se dá na tragédia, através do mito e da música. Nessa perspectiva, entende que o mundo e a existência não podem parecer justificados a não ser como fenômenos estéticos.
Apolo, deus do sonho, das artes plásticas, está relacionado ao aspecto formador de Estados e parece apontar para o princípio de individuação. Podemos estabelecer aqui a relação entre a imagem e o conceito, o conhecimento e a verdade. Dionísio, por sua vez, associado à música, fala um idioma universal e mantém com ela uma relação parecida com as coisas individuais. Aqui, a relação que se estabelece é com a alegria primitiva, com o abismo e o caos. Na embriaguez dionisíaca, porém, podemos encontrar o sentimento de elevação, de força e de plenitude, isto é, a capacidade de se lançar para além de si. Essa universalidade da música, contudo, não se dá de modo conceitual, como nas artes plásticas e na tragédia, por exemplo, justamente por isso a música se diferencia das demais expressões artísticas. Com isso, entendemos que Nietzsche vê na música a expressão do próprio mundo. Nas palavras de Nietzsche:


[...] A tragédia absorve em si o orgiasmo supremo da música: desse modo leva a música diretamente à perfeição, entre os gregos como entre nós, mas ela lhe acrescenta o mito trágico e o herói trágico que, semelhante a um formidável titã, toma sobre seus ombros o fardo do mundo dionisíaco, fardo do qual nos livra.” (2006, p. 146).

Assim, somente quando o compositor sabe exprimir na linguagem universal os elementos da própria vontade, a melodia está repleta de expressão, isto é, ela instaura algo. Nesse sentido, a arte dionisíaca exerce alguns efeitos sobre os recursos apolíneos. Para Nietzsche, a música confere ao mito trágico a expressão do conhecimento dionisíaco, pois a música clarifica o mito. Vejamos o que ele nos diz:

[...] A música, em contrapartida, confere ao mito trágico uma significação metafísica tão penetrante e tão decisiva que, sem essa ajuda única, a palavra e a imagem teriam ficado para sempre impotentes para poder atingi-la. E é especialmente graças à música que o espectador da tragédia fica invadido por esse pressentimento de uma alegria suprema, para o qual conduz um caminho de ruína e de negação, de modo que acredita ouvir a voz mais secreta das coisas lhe falar inteligivelmente do fundo do abismo.(2006, p. 147)

O nascimento da tragédia, especificamente da tragédia musical, se dá por esta afinidade entre o mito e a música, Apolo e Dionísio, uma vez que a gênese do mito trágico é justamente esta, nas palavras de Nietzsche:

[...] Ele compartilha com a esfera artística apolínea da plena alegria na aparência e na contemplação e, ao mesmo tempo, nega essa alegria e encontra satisfação ainda superior no aniquilamento do mundo visível da aparência.” Esse mundo visível da aparência é a expressão do conhecimento dionisíaco pelo qual o homem se defronta com o abismo, nega a si mesmo, desaparece e reaparece num constante vir a ser. (2006, p. 166).
Na compreensão de Nietzsche, a arte dionisíaca é captada mediante a possibilidade de significação proporcionada através da dissonância musical. Nesse sentido, a alegria primitiva presente em Dionísio é, diante da dor e do caos, a fonte geradora da música e do mito trágico. Podemos aqui, entender de que modo Nietzsche caracteriza os efeitos da dissonância na tragédia:


[...] Se entendemos finalmente, pois, o que significa, na tragédia, querer contemplar e ao mesmo tempo aspirar além dessa contemplação, esse estado necessitaríamos caracterizá-lo com relação ao emprego artístico da dissonância, a saber: Que queremos ouvir e ao mesmo tempo aspiramos para além do que ouvimos. Esta aspiração para o infinito, esse bater asas para além do desejo, no momento em que sentimos a maior alegria da clara percepção da realidade, nos relembra que nesses dois estados devemos reconhecer um fenômeno dionisíaco que, sempre e sem cessar, nos revela ao eflúvio de uma alegria primitiva no jogo de criar e de destruir o mundo individual, de maneira semelhante à Heráclito(...).” (2006, p.168)

Aqui, entendo que encontramos as raízes do incomensurável, que é representado pelo jogo artístico e se manifesta no desejo de plenitude no humano. É possível constatar, também, que freqüentemente Nietzsche faz referência a Heráclito, o que revela uma identificação com o pensamento heraclítico1 . Então, podemos considerar que o lógos originário - presente em Heráclito, que é derivado do legein e significa recolher - parece dizer justamente isso: a ação de recolher o múltiplo para constituir o um. O resultado da ação da colheita é o colhido, isto é, o lógos. Isto me remete a dois fragmentos de Heráclito que parece nos dizer algo, são eles: Fragmento XXII: “Conjunções: completas e não completas, convergente e divergente, consonante e dissonante, e de todas as coisas um e de um, todas as coisas”. (2002, p. 200) , e ainda o Fragmento XVI, que parece aclarar os limites do lógos e a sua real possibilidade. Diz apenas: “Aproximação” (2002, p.199).
Sob este aspecto, parece apontar para o abismo humano e o modo como Dionísio se faz lembrar através de Apolo. Através da arte, o alegre delírio da arte, esses dias de transfiguração que evocam a lembrança do princípio de individuação e, justamente aí, reside o fenômeno artístico, ou seja, através destes dois instintos da arte. Sob este aspecto Nietzsche profere:
[...] Somente a estranha mistura que forma a característica das emoções dos sonhadores dionisíacos evoca sua lembrança – como um bálsamo salutar relembra o veneno mortal – quero dizer, esse fenômeno do sofrimento que suscita o prazer, a alegria que arranca sons dolorosos. Da mais elevada alegria brota o grito de horror ou a queixa ardente de uma perda irreparável. (2006, p.35)

Sob a perspectiva da linguagem, que é uma especificidade em Nietzsche, proponho aqui uma reflexão com base em estudos mais recentes. Mediante a leitura do artigo intitulado O Olhar e a Voz em tempos virtuais de autoria de Mário Fleig
[1], penso que é possível estabelecer aqui algumas relações, quais sejam: se considerarmos que essa dissonância musical, presente na representação de Dionísio, é um signo que confunde prazer e dor, vida e morte, então ela é o lugar do negativo, do insondável humano, está associada à morte e ao ideal de plenitude. Por sua vez, a tragédia que está associada à Apolo e estabelece a relação entre a imagem e o conceito, pode ser entendida como o significante da arte, uma vez que proporciona as operações de substituição e deslocamento, constituindo a metáfora. Nesse sentido, retomando Nietzsche, me parece que é justamente aí que a arte dionisíaca exerce alguns efeitos, ou seja, instaura algo sobre os recursos apolíneos.
Nesse sentido, penso que existe aqui, uma aproximação com o pensamento freudiano, no que se refere às pulsões. Freud desenvolveu duas descrições dos instintos básicos, o primeiro modelo descrevia duas forças opostas, a sexual ou, de modo geral, a erótica, fisicamente gratificante e a agressiva ou destrutiva. Estas forças são vistas como mantenedoras da vida ou como incitadoras da morte ou destruição. Este antagonismo básico não é necessariamente visível na vida mental, pois a maioria de nossos pensamentos e ações é evocada não por apenas uma destas forças instintivas, mas por ambas em combinação.
Aqui, a combinação artística, que se manifesta na tragédia grega, é possível através da imitação do sonho apolíneo e da embriaguez dionisíaca. Assim, considerando todo o artista um imitador, Nietzsche nos diz:


[...] É como tal que devemos considerá-lo quando, exaltado pela embriaguez dionisíaca até a mística renúncia de si mesmo, se prostra solitário, longe dos coros em delírio, e é então que, pela potência do sonho apolíneo, seu próprio estado, isto é, sua unidade, sua identificação com o fundo mais íntimo do universo, lhe é revelado numa alegoria do imaginário onírico.” (2006, p. 33).

Assim, na medida em que refletimos o pensamento Nietzschiano, somos instigados ao questionamento e provocados em nossos próprios abismos. Seus aforismos nos remetem ao pensamento mítico de onde parece aflorar as origens do incomensurável e do desejo de plenitude no humano; contudo, a cultura ocidental, com sua pretensiosa megalomania, tentou decifrar estes símbolos e signos por intermédio do conhecimento e, assim, traduzi-los em verdades absolutas. De modo antagônico, sua crítica acirrada nos faz pensar, de um lado, o modo como as “verdades” se estabeleceram; de outro, a necessidade que temos da verdade como fundamento para a valoração da vida enquanto criação, mesmo que essa verdade corresponda apenas a uma “ilusão”.
Enfim, a vida que se move oscilando entre a criação e a destruição, a alegria e a dor, o bem e o mal; eis aí a grande obra de arte. Por esta razão, entendo que as significações e o sentido que criamos para as coisas, para as pessoas e para o mundo, estão intimamente ligados a essa idéia. O próprio Nietzsche revela que seu sofrimento aflora na justa proporção em que pesam a superabundância de vida, isto é, que reclama uma arte dionisíaca em oposição a uma visão unicamente trágica da vida. É nesse sentido, portanto, que o homem dionisíaco se deixa viver entre o que é terrível e inquietante, mas também se permite interpretar, construir e criar.
Assim, apesar de sugerir um exacerbado individualismo, o pensamento nietzschiano traduz as possibilidades e as limitações da linguagem em todas as suas formas de expressão. Nesse sentido, é possível um posicionamento crítico em relação a nós mesmos, a alteridade, o outro e o mundo. Esse parece ser o nosso horizonte: a capacidade de significar e criar sentido que, por sua vez aponta para a possibilidade da responsabilidade, do comprometimento e do amor.
Então, permito-me finalizar propondo uma reflexão sobre a ambigüidade que somos, o nosso desejo de plenitude que jamais se esgota e os limites do incomensurável no humano. Assim, através das palavras de Nietzsche, re-visitar sua reflexão sobre a dissonância tornada criatura humana, a saber:


[...] e que é o homem, senão isso? – para poder viver essa dissonância necessitaria de uma magnífica ilusão que escondesse dela mesma sua verdadeira natureza sob um véu de beleza. Essa é a verdadeira intenção artística de Apolo, sob cujo nome reunimos todas essas inumeráveis ilusões de bela aparência que tornam, a cada dia, a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante que se segue. Ao mesmo tempo, porém, desse fundamento de nossa existência, do substrato dionisíaco do mundo, não deve penetrar na consciência do indivíduo humano senão precisamente a exata medida com a qual é possível ao poder transfigurador apolíneo triunfar por seu turno de maneira que esses dois instintos de arte sejam obrigados a despregar suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo a lei de uma eqüidade eterna. (2006, p. 171)



Referências:

COSTA, Alexandre, Heráclito: Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro, DIFEL, 2002.


FLEIG, Mário, O Olhar e a voz em tempos virtuais, Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.


HEIDEGGER, Martin, Nietzsche, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, O Nascimento da Tragédia, Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Obras incompletas, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1979.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, A Gaia Ciência, Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.



[1] Mario Fleig possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia N Sra Medianeira (1973), graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1982), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Metafísica, atuando principalmente nos seguintes temas: Heidegger, hermenêutica, ontologia, linguagem, ética e psicanálise. Psicanalista, analista membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos.

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