sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A evolução virtual e o advento da cibercultura.




Resenha de artigo: “O olhar e a voz em tempos virtuais”.



O artigo estudado foi elaborado pelo Professor Mário Fleig, Doutor em Filosofia (PUC-RS), Professor do PPG-Filosofia da UNISINOS, psicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale. Foi publicado na Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.
Fornece uma excelente contribuição quanto a alguns paradigmas enfrentados na contemporaneidade, especificamente no que se refere a reflexão sobre os efeitos subjetivos e sociais decorrentes da passagem do modelo trinitário para o modelo binário de referência. Esse último também presente na revolução virtual e determinante do advento da cibercultura parece apontar para alguns sintomas presentes em nosso tempo, ou seja, o discurso no qual não se opera a referência ao terceiro. Nessa perspectiva, o artigo se propõe descrever o olhar e a voz como forma fundamental da estruturação e da constituição humana com vistas ao conceito freudiano de pulsão.
Na introdução do artigo, Fleig apresenta a problematização em que aponta a passagem das culturas orais para as culturas da escrita, cujas mudanças proporcionaram a universalização das referências. Nessa perspectiva, a questão norteadora se volta para os efeitos subjetivos e sociais aí implicados, uma vez que o olhar e a voz sempre fundamentaram a estruturação da condição humana.
Antecedendo, porém, a discussão que caracteriza especificamente o olhar e a voz como operadores constitutivos da condição humana, foi examinado o campo em que se insere o estatuto da revolução virtual e estabelecidos esclarecimentos sobre o digital e o virtual. Segue daí a caracterização que se estabelece, qual seja: O digital se organiza segundo um modelo dual, que possibilita transformar dados analógicos e permite, assim, o armazenamento em arquivos. O modelo binário, portanto, aparece em toda formulação dualista. Já no modelo ternário, analógico, presente na filosofia platônica, supõe a relação entre pares que, sendo dessemelhantes, requer um terceiro a fim de que haja a passagem para a síntese. Sobre a analogia, que no decorrer do texto se esclarece, nos afirma Fleig: “Isso aproxima o analógico do metafórico”.
Penso que o ponto alto do artigo se dá justamente quando contextualiza o sistema virtual e a relação de proximidade que se estabelece no processo de estruturação da condição humana. É sob esta perspectiva, portanto, que pretendo desenvolver minhas reflexões sobre o texto.
De acordo com a teoria freudiana, as primeiras pulsões que ocorrem são as do auto-erotismo, uma vez que o bebê não distingue o si mesmo do outro. Assim, para que haja a constituição do “eu" é fundamental assumir a imagem do corpo no espelho, cujo reconhecimento se dá pela função do olhar da mãe que lhe faz o reconhecimento e o assentimento. Segue daí o primeiro enigma, ou seja, através da identificação do próprio “eu” como imagem de unificação de si, emerge a separação do Outro (mãe). Nesse sentido, para que haja a apropriação e a interiorização dessa imagem, o espelho desempenha o lugar do terceiro. E é justamente aí, onde se produz o desamparo, ou seja, a mãe que escapa ao bebê, (castração) é que emerge a falta de um significante, ou como mencionado no texto, a falta de ao menos um significante que faça a ruptura com a binariedade. Assim, quando se defronta com a falta do Outro (mãe), o significante terceiro (pai) demarca o modelo trinitário, uma vez que realiza a substituição metafórica, proporcionando, assim, a sua inserção no social (lei). Isto sinaliza para o fato de que o mesmo ato que funda o desejo, delimita o acesso ao gozo e, por sua vez, o lugar de cada sujeito no campo social. Nas palavras de Fleig: (...) “esse circuito pulsional, implicando esses três momentos: o momento de poder enlaçar algo, que é exterior ao organismo; o momento de retorno ao organismo; e o momento em que há um outro que testemunha a operação. Isso implica a estruturação do social”.
No que se refere à linguagem, Fleig faz referência a Aristóteles e remonta a idéia de que a linguagem é especificidade do humano. Diferente, portanto, da voz (signo) uma vez que ela também pertence aos animais e constitui a dimensão inarticulada. Diante disso a relação que se estabelece é de que a voz é um signo que confunde prazer e dor, vida e morte, desejo e alteridade, isto é, o lugar do negativo, do insondável humano que é ocupado pela letra e que se articula pela linguagem. Em outras palavras, o que constitui o real da voz está associado à morte e ao ideal de plenitude.
A fala, por sua vez, serve para manifestar a relação com o mundo e com os outros seres vivos. O discurso em que existe referência ao terceiro, proporciona as operações de substituição e deslocamento na fala do sujeito. Sendo assim, o ato de fala fica entendido como a voz que toma corpo, ou seja, é o significante que determina a estruturação do inconsciente. E nesta estruturação estão implicados corpo, desejo e gozo, cuja repressão se faz necessária para a efetividade na estruturação do sujeito do inconsciente. Isso retoma os três registros isolados por Lacan e que nos é citado por Fleig, a saber: “o real da morte, o imaginário da completude com o Outro materno e o simbólico da articulação significante em forma de saber.” E é justamente aí, no lugar em que ocorrem as primeiras pulsões, que se instala esse abismo que não deixa pronunciar, é o lugar da subversão, em que a linguagem é sempre insuficiente, uma vez que não pode se fechar. Por sua vez, parece apontar para a questão de como é possível falar e dizer o falso. E, em que medida esse falso pode indicar alguns traços para o estudo psicanalítico.
Por outro lado, porém, os estudos revelam que na introdução do sujeito na linguagem pode estar presente a falha discursiva da metáfora, o que constitui a fixação de um modelo dual. Nesse sentido, diante da ausência do modelo completo, o sujeito não encontra a possibilidade de endereçamento ao Outro (terceiro), isto é, o significante necessário à metáfora. Na teoria freudiana a psicose manifesta essa característica, em que o sujeito se constitui na condição e certeza de ser a causa de si mesmo.
Nesse sentido, entendo que é possível estabelecer uma relação com o pensamento de Lévinas, uma vez que a questão da alteridade é de fundamental importância na constituição do sujeito. Em Lévinas, o eu, ou seja, o “eu mesmo” somente se constrói pela apropriação do mundo com o outro. Na relação, o outro tem anterioridade ao eu, pois existencialmente ele é. Quando o outro se apresenta, esse outro me olha, presença, é o dizer antes do dito. O sentido dele eu não consigo atingir com minhas palavras, pois sempre há algo que me escapa. Portanto, para Lévinas, o conhecimento é sempre uma revelação e isto significa dizer que não conhecemos o outro, mas sim, o outro que se revela a nós e é preciso, então, acolhê-lo. Sob este aspecto, é possível compreender que tanto o olhar quanto a voz, jamais podem se adequar à fala, ou seja, entre eles, existe sempre um abismo entre o que é dito e o que está sendo referido no dito. O real da voz, presente no inarticulado, se perde no esquecimento para se articular através fala que jamais dá conta de dizer e dizer-se.
Nessa perspectiva, entendo que cabe aqui o recorte de um outro viés que, sem dúvida, representa, também, os sintomas de nosso tempo, se manifestam nos sujeitos e, conseqüentemente, no campo social. Desde o iluminismo, mais precisamente com o positivismo, produziu-se a crença nas certezas absolutas, na “verdade” das ciências. Segue daí, conseqüentemente, alguns reflexos da modernidade, quais sejam: Se por um lado proporcionou o resgate do indivíduo, de outro, mediante a desconstrução do pensamento metafísico surge um grande paradoxo, uma vez que temos aí o diagnóstico da crise pós-moderna que se configurou no relativismo que destruiu a cultura das convicções.Migramos de uma espécie de “incerteza objetiva” para a “certeza objetiva”. A partir daí, esta emancipação do sujeito revelou a cultura do individualismo, tão presente em nossos dias e que se manifesta pela exaltação do “eu”.
Nesta mesma linha de raciocínio, ocorre a possibilidade de estabelecer uma relação com Nietzsche, razão pela qual cabe questionar: Até que ponto o conceito freudiano de pulsão pode estar relacionado à estética nietzschiana, especificamente na vontade de poder? Em que medida é possível estabelecer uma relação entre as pulsões e a aproximação apolínea e dionisíaca? Não é objetivo aqui aprofundar estas questões, apenas sinalizar para uma reflexão posterior.
Realizadas estas observações e questionamentos, retomemos o texto em estudo em que são feitos esclarecimentos que abarcam a constituição e a condição do humano. Precisamente, quando da retomada da questão inicial, no tocante aos efeitos subjetivos e sociais que a revolução digital pode espelhar, uma vez que pressupõe um modelo binário. Aqui, a questão pontual, me parece justamente a observação de que a revolução biológica não está distante da entrada no mundo virtual. Sob este aspecto, somos conduzidos à reflexão de que existe aí uma aproximação, qual seja: enquanto na revolução biológica, com os processos de reprodução e fecundação, ocorre a dispensa do “pai”, o significante terceiro, o mesmo acontece no campo virtual. Segue daí a hipótese de Fleig, de que ambas determinam a passagem do modelo trinitário para o modelo binário de organização e estruturação da condição humana. A esse exemplo, podemos pensar nos sites de relacionamentos, em que máscaras são criadas, personagens inventados, em detrimento do comprometimento e responsabilização de si e do outro. Nesse sentido, é possível perceber as possíveis implicações de uma subjetivação fundada no modelo binário. Em conseqüência disso, vemos a paranóia presente em nosso cotidiano, uma vez que os efeitos da chamada forclusão do terceiro se manifestam na certeza da completude, do gozo sem limites, a certeza da certeza. Nas palavras de Fleig: “Fala-se, mas já não se sabe mais quem fala e para quem se fala”. Nessa perspectiva, faço referência a alguns sintomas apontados nas palavras de Fleig:
Acompanhamos a progressiva impessoalização do discurso, a crescente instrumentalização das relações, aliada à velocidade da substituição dos artefatos(o instantâneo, a obsolência programada, o descartável) a desresponsabilização em relação ao outro e a si mesmo, a progressiva queda da consistência do outro e da relação com ele, a equiparação entre o objeto de consumo, rapidamente descartável, e a pessoa de meu semelhante, a dissipação da intimidade e da privacidade, o surgimento de corpos angelicais, deserotizados, inodoros, assépticos, etc., a desconexão entre sexo, erotismo e amor?

Assim, somos tomados por algo de instigante, que nos conduz a reflexão de que certamente não podemos responsabilizar o ciberespaço por estes sintomas de nossa contemporaneidade, e aqui entendo que essa observação é válida para toda e qualquer evolução tecnológica; contudo, requer, de nós usuários, uma crítica acirrada em que se pese os benefícios que este espaço pode nos proporcionar, em oposição ao engano da crença de que somos nós que estamos no comando, tanto do objeto virtual, quanto de todos objetos de consumo.

Enfim, é um artigo motivador, razão pela qual é recomendado a todos que se interessam pela linguagem, especificamente no campo em que se insere a filosofia, a psicologia e a psicanálise. A constituição de nossa condição passa pelo olhar, pela voz, na percepção do corpo, pelo toque, pelo sentir que é exclusivamente humano e que está vinculado ao que seremos e ao que somos. Nesse sentido, o trabalho em questão estimula a compartilhar, junto ao autor, dos seus pressupostos teóricos à luz dos referenciais bibliográficos apresentados.

Referências:
FLEIG, Mário, O Olhar e a Voz em tempos virtuais, Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.

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