quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

AMBIGUIDADE

Quando refletimos sobre a ambigüidade que somos, percebemos o quanto estamos implicados em nossa própria linguagem. Sob este aspecto, o Fragmento XVI, de Heráclito, parece aclarar os limites do Lógos e a sua real possibilidade. O fragmento diz apenas: “Aproximação”. Eis o que a linguagem, como uma forma de dizer projetante (uma vez que nos lança alhures), nos possibilita: dizer, nas entrelinhas do que pode ser dito, aquilo que subjaz em nossos próprios abismos. É o vazio, inerente à condição humana, que não se deixa pronunciar. É o lugar da subversão em que a linguagem parece sempre insuficiente, uma vez que não pode se fechar. (Gules/2010).

Proponho que reflitamos um traço do que pode ser dito sobre a ambiguidade mesma que nos constitui, no dizer poético de Osvaldo Montenegro:


Metade - (Osvaldo Montenegro).

Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
porque metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
apenas respeitadas
como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
e que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita em meu rosto num doce sorriso
que eu me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também.

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