sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

TRANSTORNO BIPOLAR DO HUMOR

Em nossos dias, não há dúvidas de que estamos todos submetidos a inúmeras formas de instabilidade, provocadas por fatores tanto internos quanto externos. No entanto, cabe refletirmos em que medida estas oscilações ocorrem com maior ou menor freqüência e intensidade. Importante ressaltar que tem sido muito frequente o diagnóstico de bipolaridade. O que ocorre em muitas situações é que basta as pessoas chegarem em determinados consultórios queixando-se de que em alguns dias sentem-se felizes e em outros, muito tristes, para que a análise seja conclusiva. Segue daí o risco do corriqueiro, ou seja, o pronto diagnóstico, muitas vezes paradigmático e "rotulador", cujos reflexos tornam-se determinantes na vida dos indivíduos. Importante, nesse sentido, refletirmos a partir de alguns dados da ciência médica, que investiga este transtorno, com intuito de não aceitarmos meras generalizações como certeza. Somente a partir daí, pressuponho, podemos reconhecê-la, identificá-la, aceitá-la como um transtorno, ou não.
A seguir um link que traz algumas informações sobre a saúde física e psíquica:


TRANSTORNO BIPOLAR DO HUMOR - ABC da Saúde

A evolução virtual e o advento da cibercultura.




Resenha de artigo: “O olhar e a voz em tempos virtuais”.



O artigo estudado foi elaborado pelo Professor Mário Fleig, Doutor em Filosofia (PUC-RS), Professor do PPG-Filosofia da UNISINOS, psicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale. Foi publicado na Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.
Fornece uma excelente contribuição quanto a alguns paradigmas enfrentados na contemporaneidade, especificamente no que se refere a reflexão sobre os efeitos subjetivos e sociais decorrentes da passagem do modelo trinitário para o modelo binário de referência. Esse último também presente na revolução virtual e determinante do advento da cibercultura parece apontar para alguns sintomas presentes em nosso tempo, ou seja, o discurso no qual não se opera a referência ao terceiro. Nessa perspectiva, o artigo se propõe descrever o olhar e a voz como forma fundamental da estruturação e da constituição humana com vistas ao conceito freudiano de pulsão.
Na introdução do artigo, Fleig apresenta a problematização em que aponta a passagem das culturas orais para as culturas da escrita, cujas mudanças proporcionaram a universalização das referências. Nessa perspectiva, a questão norteadora se volta para os efeitos subjetivos e sociais aí implicados, uma vez que o olhar e a voz sempre fundamentaram a estruturação da condição humana.
Antecedendo, porém, a discussão que caracteriza especificamente o olhar e a voz como operadores constitutivos da condição humana, foi examinado o campo em que se insere o estatuto da revolução virtual e estabelecidos esclarecimentos sobre o digital e o virtual. Segue daí a caracterização que se estabelece, qual seja: O digital se organiza segundo um modelo dual, que possibilita transformar dados analógicos e permite, assim, o armazenamento em arquivos. O modelo binário, portanto, aparece em toda formulação dualista. Já no modelo ternário, analógico, presente na filosofia platônica, supõe a relação entre pares que, sendo dessemelhantes, requer um terceiro a fim de que haja a passagem para a síntese. Sobre a analogia, que no decorrer do texto se esclarece, nos afirma Fleig: “Isso aproxima o analógico do metafórico”.
Penso que o ponto alto do artigo se dá justamente quando contextualiza o sistema virtual e a relação de proximidade que se estabelece no processo de estruturação da condição humana. É sob esta perspectiva, portanto, que pretendo desenvolver minhas reflexões sobre o texto.
De acordo com a teoria freudiana, as primeiras pulsões que ocorrem são as do auto-erotismo, uma vez que o bebê não distingue o si mesmo do outro. Assim, para que haja a constituição do “eu" é fundamental assumir a imagem do corpo no espelho, cujo reconhecimento se dá pela função do olhar da mãe que lhe faz o reconhecimento e o assentimento. Segue daí o primeiro enigma, ou seja, através da identificação do próprio “eu” como imagem de unificação de si, emerge a separação do Outro (mãe). Nesse sentido, para que haja a apropriação e a interiorização dessa imagem, o espelho desempenha o lugar do terceiro. E é justamente aí, onde se produz o desamparo, ou seja, a mãe que escapa ao bebê, (castração) é que emerge a falta de um significante, ou como mencionado no texto, a falta de ao menos um significante que faça a ruptura com a binariedade. Assim, quando se defronta com a falta do Outro (mãe), o significante terceiro (pai) demarca o modelo trinitário, uma vez que realiza a substituição metafórica, proporcionando, assim, a sua inserção no social (lei). Isto sinaliza para o fato de que o mesmo ato que funda o desejo, delimita o acesso ao gozo e, por sua vez, o lugar de cada sujeito no campo social. Nas palavras de Fleig: (...) “esse circuito pulsional, implicando esses três momentos: o momento de poder enlaçar algo, que é exterior ao organismo; o momento de retorno ao organismo; e o momento em que há um outro que testemunha a operação. Isso implica a estruturação do social”.
No que se refere à linguagem, Fleig faz referência a Aristóteles e remonta a idéia de que a linguagem é especificidade do humano. Diferente, portanto, da voz (signo) uma vez que ela também pertence aos animais e constitui a dimensão inarticulada. Diante disso a relação que se estabelece é de que a voz é um signo que confunde prazer e dor, vida e morte, desejo e alteridade, isto é, o lugar do negativo, do insondável humano que é ocupado pela letra e que se articula pela linguagem. Em outras palavras, o que constitui o real da voz está associado à morte e ao ideal de plenitude.
A fala, por sua vez, serve para manifestar a relação com o mundo e com os outros seres vivos. O discurso em que existe referência ao terceiro, proporciona as operações de substituição e deslocamento na fala do sujeito. Sendo assim, o ato de fala fica entendido como a voz que toma corpo, ou seja, é o significante que determina a estruturação do inconsciente. E nesta estruturação estão implicados corpo, desejo e gozo, cuja repressão se faz necessária para a efetividade na estruturação do sujeito do inconsciente. Isso retoma os três registros isolados por Lacan e que nos é citado por Fleig, a saber: “o real da morte, o imaginário da completude com o Outro materno e o simbólico da articulação significante em forma de saber.” E é justamente aí, no lugar em que ocorrem as primeiras pulsões, que se instala esse abismo que não deixa pronunciar, é o lugar da subversão, em que a linguagem é sempre insuficiente, uma vez que não pode se fechar. Por sua vez, parece apontar para a questão de como é possível falar e dizer o falso. E, em que medida esse falso pode indicar alguns traços para o estudo psicanalítico.
Por outro lado, porém, os estudos revelam que na introdução do sujeito na linguagem pode estar presente a falha discursiva da metáfora, o que constitui a fixação de um modelo dual. Nesse sentido, diante da ausência do modelo completo, o sujeito não encontra a possibilidade de endereçamento ao Outro (terceiro), isto é, o significante necessário à metáfora. Na teoria freudiana a psicose manifesta essa característica, em que o sujeito se constitui na condição e certeza de ser a causa de si mesmo.
Nesse sentido, entendo que é possível estabelecer uma relação com o pensamento de Lévinas, uma vez que a questão da alteridade é de fundamental importância na constituição do sujeito. Em Lévinas, o eu, ou seja, o “eu mesmo” somente se constrói pela apropriação do mundo com o outro. Na relação, o outro tem anterioridade ao eu, pois existencialmente ele é. Quando o outro se apresenta, esse outro me olha, presença, é o dizer antes do dito. O sentido dele eu não consigo atingir com minhas palavras, pois sempre há algo que me escapa. Portanto, para Lévinas, o conhecimento é sempre uma revelação e isto significa dizer que não conhecemos o outro, mas sim, o outro que se revela a nós e é preciso, então, acolhê-lo. Sob este aspecto, é possível compreender que tanto o olhar quanto a voz, jamais podem se adequar à fala, ou seja, entre eles, existe sempre um abismo entre o que é dito e o que está sendo referido no dito. O real da voz, presente no inarticulado, se perde no esquecimento para se articular através fala que jamais dá conta de dizer e dizer-se.
Nessa perspectiva, entendo que cabe aqui o recorte de um outro viés que, sem dúvida, representa, também, os sintomas de nosso tempo, se manifestam nos sujeitos e, conseqüentemente, no campo social. Desde o iluminismo, mais precisamente com o positivismo, produziu-se a crença nas certezas absolutas, na “verdade” das ciências. Segue daí, conseqüentemente, alguns reflexos da modernidade, quais sejam: Se por um lado proporcionou o resgate do indivíduo, de outro, mediante a desconstrução do pensamento metafísico surge um grande paradoxo, uma vez que temos aí o diagnóstico da crise pós-moderna que se configurou no relativismo que destruiu a cultura das convicções.Migramos de uma espécie de “incerteza objetiva” para a “certeza objetiva”. A partir daí, esta emancipação do sujeito revelou a cultura do individualismo, tão presente em nossos dias e que se manifesta pela exaltação do “eu”.
Nesta mesma linha de raciocínio, ocorre a possibilidade de estabelecer uma relação com Nietzsche, razão pela qual cabe questionar: Até que ponto o conceito freudiano de pulsão pode estar relacionado à estética nietzschiana, especificamente na vontade de poder? Em que medida é possível estabelecer uma relação entre as pulsões e a aproximação apolínea e dionisíaca? Não é objetivo aqui aprofundar estas questões, apenas sinalizar para uma reflexão posterior.
Realizadas estas observações e questionamentos, retomemos o texto em estudo em que são feitos esclarecimentos que abarcam a constituição e a condição do humano. Precisamente, quando da retomada da questão inicial, no tocante aos efeitos subjetivos e sociais que a revolução digital pode espelhar, uma vez que pressupõe um modelo binário. Aqui, a questão pontual, me parece justamente a observação de que a revolução biológica não está distante da entrada no mundo virtual. Sob este aspecto, somos conduzidos à reflexão de que existe aí uma aproximação, qual seja: enquanto na revolução biológica, com os processos de reprodução e fecundação, ocorre a dispensa do “pai”, o significante terceiro, o mesmo acontece no campo virtual. Segue daí a hipótese de Fleig, de que ambas determinam a passagem do modelo trinitário para o modelo binário de organização e estruturação da condição humana. A esse exemplo, podemos pensar nos sites de relacionamentos, em que máscaras são criadas, personagens inventados, em detrimento do comprometimento e responsabilização de si e do outro. Nesse sentido, é possível perceber as possíveis implicações de uma subjetivação fundada no modelo binário. Em conseqüência disso, vemos a paranóia presente em nosso cotidiano, uma vez que os efeitos da chamada forclusão do terceiro se manifestam na certeza da completude, do gozo sem limites, a certeza da certeza. Nas palavras de Fleig: “Fala-se, mas já não se sabe mais quem fala e para quem se fala”. Nessa perspectiva, faço referência a alguns sintomas apontados nas palavras de Fleig:
Acompanhamos a progressiva impessoalização do discurso, a crescente instrumentalização das relações, aliada à velocidade da substituição dos artefatos(o instantâneo, a obsolência programada, o descartável) a desresponsabilização em relação ao outro e a si mesmo, a progressiva queda da consistência do outro e da relação com ele, a equiparação entre o objeto de consumo, rapidamente descartável, e a pessoa de meu semelhante, a dissipação da intimidade e da privacidade, o surgimento de corpos angelicais, deserotizados, inodoros, assépticos, etc., a desconexão entre sexo, erotismo e amor?

Assim, somos tomados por algo de instigante, que nos conduz a reflexão de que certamente não podemos responsabilizar o ciberespaço por estes sintomas de nossa contemporaneidade, e aqui entendo que essa observação é válida para toda e qualquer evolução tecnológica; contudo, requer, de nós usuários, uma crítica acirrada em que se pese os benefícios que este espaço pode nos proporcionar, em oposição ao engano da crença de que somos nós que estamos no comando, tanto do objeto virtual, quanto de todos objetos de consumo.

Enfim, é um artigo motivador, razão pela qual é recomendado a todos que se interessam pela linguagem, especificamente no campo em que se insere a filosofia, a psicologia e a psicanálise. A constituição de nossa condição passa pelo olhar, pela voz, na percepção do corpo, pelo toque, pelo sentir que é exclusivamente humano e que está vinculado ao que seremos e ao que somos. Nesse sentido, o trabalho em questão estimula a compartilhar, junto ao autor, dos seus pressupostos teóricos à luz dos referenciais bibliográficos apresentados.

Referências:
FLEIG, Mário, O Olhar e a Voz em tempos virtuais, Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam


O livro “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Rotterdam[1], retrata a sociedade do século XVI, mas podemos perfeitamente afirmar que é em nosso tempo que a loucura atinge a supremacia.
Com uma fina ironia, Erasmo apresenta a “loucura” como primeira pessoa, ou seja, é a loucura quem escreve, fala e se revela a rainha de todos os homens.
A partir do pressuposto de que a “ironia” também fala de coisas sérias, o “Elogio da Loucura” se apresenta como uma crítica acirrada contra os detentores do poder na sociedade e nos faz refletir de maneira questionadora sobre a hipocrisia no humano.
Deixemos, pois, que a loucura fale e reflitamos sobre o seu direito ao título de divindade:


As companheiras da loucura

Esta de sobrancelhas franzidas é Philautia, isto é, o amor-próprio. Esta, de olhos risonhos, batendo palmas é Kolaxia, a adulação. Aquela, de pálpebras cerradas, parecendo dormir é Lethes, o esquecimento. E aquela que se apóia nos cotovelos e cruza as mãos é Misoponia, a preguiça. Aquela que está coroada de rosas, toda perfumada é Hedones, a volúpia. Aquela que revira os olhos sem fixá-los em ponto algum é Anoia, a irreflexão. Aquela bem nutrida e bem corada é Tryphe, a moleza. Entre essas jovens, estão também dois deuses: um é Komo, a boa mesa e o outro, Nigreton Hypnon, o sono profundo. Acompanhada por esses servidores que fielmente me prestam ajuda, estendo meu domínio sobre o mundo e reino até mesmo sobre os monarcas. (ERASMO, p.22).

Enquanto referência, essa divindade está no homem e nesse sentido não há mais nada além dele próprio. Daí a “certeza” de nosso tempo: não temos um referente Outro: (pai, governante, lei) ou grande Outro: Deus.
Quando observo os relacionamentos, o que se passa é que migramos da heteronomia para a anomia, ou seja, agora é cada um por si, os outros que se danem. Se há alguém responsável, então ele que se vire.

Deixemos que a certeza fale:

Como a loucura perpetua a espécie humana

Antes de tudo, o que há de mais doce, de mais precioso que a vida? E a quem se deve, senão a mim, seu início? Não é a lança de palas, de pai poderoso, nem a égide de júpiter que ajunta nuvens, não são eles que geram e propagam o gênero humano. [...] Enfim, forçoso será que ele recorra precisamente à minha ajuda, se quiser tornar-se pai. (ERASMO, p. 23).

Referência:

ROTTERDAM, Erasmo, Elogio da Loucura, Escala, São Paulo.

[1] Desiderius Erasmus Roterodamus, conhecido como Erasmo de Roterdão (Português europeu) ou Roterdã (Português brasileiro). Nasceu em 27 de Outrubro de 1466, Roterdão — 12 de julho de 1536, Basiléia. Foi um teólogo e um humanista neerlandês.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Plenitude/Horizonte




A proposta é de refletirmos sobre a Estória do Gato e da Lua - realizador do vídeo: Pedro Serrazina




Estória do Gato e da Lua é um curta-metragem de animação de Pedro Serrazina. O autor português ganhou os prêmios Best International 1st Film no Cinanima 95 e recebeu menção especial no festival de animação de Ottawa em 96 com sua história de um gato apaixonado pela lua e as artimanhas do bichano para capturá-la.
O curta é todo feito em preto e branco. Na primeira fase o gato aparece em uma viagem pelo mar tentando alcançar a lua. O desenho aqui é repleto de curvas, com as ondas do mar sempre cheias de movimento, representando a iminência do perigo. O reflexo da lua e do barco onde está o gato são as peças visuais que compõem o contraste. É a famosa viagem em direção ao horizonte que nunca se aproxima, um símbolo do impossível. Quando o gato decide se arriscar e pula em direção ao objeto de desejo, acaba mergulhando no reflexo da lua que se desmancha com o ondular do espelho de água.
“Quando achei que estava próximo, estava muito longe”, diz o narrador. Perceba que o gato não pula no reflexo, ele não se engana quanto a isso. Sabe exatamente o que quer e é assim que a ilusão/reflexo se desmancha com o fracasso da tentativa.




Contraponto filosófico:

Quando pensamos sobre o nosso desejo de plenitude que não cessa de se inscrever enquanto desejo... é sempre um horizonte... à luz de nosso próprio desejo... é preciso saber, no entanto, que não o alcançamos em sua plenitude...

E ainda assim, para que possamos permanecer no campo do possível... "Ne cède pas sur ton désir", ou seja, não cedas de teu desejo...


Aqui, a questão que se coloca: Podemos analisar este conto sob a perspectiva Estética? (meramente egóica, estilo Don Juan); Ética? (com vistas para o outro, como em Fausto); Religiosa? (com vistas para a grande Outro:Deus), ou uma síntese de todas elas? Em que medida podemos pensar que a plenitude almejada aparece, neste conto, vinculada a nossa única cereza: a morte?

O doce mistério da vida




Diante de tantas certezas, sobretudo o delírio da completude, a fé (enquanto o que sustenta o campo simbólico do referente Outro: Deus) emerge como uma espécie de "incerteza objetiva".

Em Sören Kierkegaard, uma possibilidade da "plenitude dos tempos", pois:


"Vê só, no instante grandioso do entusiasmo, aí mora a eternidade, mas quando então o tempo inicia a sua atividade inquieta, quando avança sempre mais; então, não se afastar do entusiasmo com o tempo, mas seguir apressadamente com a velocidade do tempo e contudo vagarosamente, com a demora da eternidade!" (Kierkegaard - As Obras do Amor).






Contraponto poético:




Poema Do Menino Jesus
Composição: Fernando Pessoa



Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra. Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva. A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a ouvir-se de longe. Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais prafingir-se de Segunda pessoa da Trindade.Um dia que DEUS estava dormindo e o Espírito Santo andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado na cruz que há no céu e serve de modelo às outras. Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro raio que apanhou. Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança bonita, de riso natural. Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças d'água, colhe as flores, gosta delas, esquece. Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares, e foge a chorar e a gritar dos cães. Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha graça, Ele corre atrás das raparigas que levam asbilhas na cabeça e levanta-lhes a saia. A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olhar para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas. Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudoque nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão. Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ridos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios. Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo materno até Ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar, põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho, sorrindo para os meus sonhos. Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu brincar.

Nesse vídeo, Maria Bethania declama o "Poema do menino Jesus", de Fernando Pessoa e, em seguida, canta "O doce mistério da vida".




quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

AMBIGUIDADE II


Um paradoxo para o campo do nosso próprio desejo é também o "outro", ou seja, o "primeiro tu" que nos interpela com seu próprio incomensurável. A existência enquanto um horizonte de plenitude é sempre um horizonte, pois a "justa adequação", a plenitude mesma, não a alcançamos. Eis aí uma possibilidade de sentido para a existência: a consciência de que a cria humana, em sua constituição, está condicionada a um vazio, uma falta que não cessa de se inscever. Contudo, é precisamente esse vazio que nos move em direção ao outro, ao futuro, e é também ele, que nos mantém no campo do possível. A busca enquanto horizonte de sentido.

No dizer poético de Fernando Pessoa: “Sou eu mesmo o trocado” e em “O Quereres”, de Caetano Veloso, Maria Bethania interpreta um "traço" do que pode ser dito frente ao que nos escapa:


O Quereres (Caetano Veloso)

Onde queres revólver sou coqueiro, onde queres dinheiro sou paixão.Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não. E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alta eu sou o chão. E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão. Onde queres família sou maluco, e onde queres romântico,burguês. Onde queres Leblon sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão. E onde queres o sim e o não, talvez, onde vês eu não vislumbro razão. Onde queres o lobo eu sou o irmão, e onde queres cowboy eu sou chinês. Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor. Onde queres o ato eu sou o espírito e onde queres ternura eu sou tesão. Onde queres o livre decassílabo e onde buscas o anjo eu sou mulher. Onde queres prazer sou o que dói e onde queres tortura, mansidão. Onde queres o lar, revolução e onde queres bandido eu sou o herói. Eu queria querer-te e amar o amor, construírmos dulcíssima prisão. E encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor. Mas a vida é real e de viés e vê só que cilada o amor me armou. E te quero e não queres como sou, não te quero e não queres como és. Onde queres comício, flipper vídeo e onde queres romance, rock'nroll. Onde queres a lua eu sou o sol, onde a pura natura, o inceticídeo. E onde queres mistério eu sou a luz. Onde queres um canto, o mundo inteiro. Onde queres quaresma, fevereiro e onde queres coqueiro eu sou obus. O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual, faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim. Infinitivamente pessoal e eu querendo querer-te sem ter fim. E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim





AMBIGUIDADE

Quando refletimos sobre a ambigüidade que somos, percebemos o quanto estamos implicados em nossa própria linguagem. Sob este aspecto, o Fragmento XVI, de Heráclito, parece aclarar os limites do Lógos e a sua real possibilidade. O fragmento diz apenas: “Aproximação”. Eis o que a linguagem, como uma forma de dizer projetante (uma vez que nos lança alhures), nos possibilita: dizer, nas entrelinhas do que pode ser dito, aquilo que subjaz em nossos próprios abismos. É o vazio, inerente à condição humana, que não se deixa pronunciar. É o lugar da subversão em que a linguagem parece sempre insuficiente, uma vez que não pode se fechar. (Gules/2010).

Proponho que reflitamos um traço do que pode ser dito sobre a ambiguidade mesma que nos constitui, no dizer poético de Osvaldo Montenegro:


Metade - (Osvaldo Montenegro).

Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
porque metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
apenas respeitadas
como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
e que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita em meu rosto num doce sorriso
que eu me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

SANIDADE/INSANIDADE



SANIDADE/INSANIDADE
Quando observamos atentamente o curso da história, percebemos que em alguns indivíduos a genialidade revela, e também distingue, o que seja o real, o possível e o imaginário. Em Vincent, temos um exemplo em que podemos perceber o gênio e sua luta pela própria sanidade. Nesse sentido, compreendemos que uma linha bastante tênue atravessa as duas margens pelas quais significamos o que seja a “loucura” e a "normalidade". Questões que me acossam: Em que medida essa borda pode estar implicada ao nosso "desejo" de plenitude? Se essa borda é precisamente o que faz limite com o vazio que nos é inerente, então em que medida o rompimento significa a negação inconsciente da incompletude humana? Em que sentido a arte, em todas as suas formas de expressão, está intimamente ligada ao nosso desejo de completude? Quais as relações do indivíduo, quando da construção da subjetividade, entre os significantes que lhe são fornecidos e os significados por ele elaborados? (Gules/2010).

Letra e música em homenagem a Vincent van Gogh e Don McLean.

Vincent (Sarry Sarry Night) - Don McLean

Starry starry night, paint your palette blue and grey.Look out on a summer's day with eyes that know the darkness in my soul. Shadows on the hills, sketch the trees and the daffodils. Catch the breeze and the winter chills, in colors on the snowy linen land. Now I understand what you tried to say to me. How you suffered for you sanity. How you tried to set them free. They would not listen they did not know how, perhaps they'll listen now. Starry starry night, flaming flowers that brightly blaze. Swirling clouds in violet haze reflect in Vincent's eyes of china blue. Colors changing hue, morning fields of amber grain. Weathered faces lined in pain are soothed beneath the artist's loving hand. Chorus:For they could not love you, but still your love was true. And when no hope was left in sight, on that starry starry night. You took your life as lovers often do,But I could have told you, Vincent,This world was never meant for one as beautiful as you. Starry, starry night, portraits hung in empty halls. Frameless heads on nameless walls with eyes that watch the world and can't forget. Like the stranger that you've met, the ragged man in ragged clothesThe silver thorn of bloody rose, lie crushed and broken on the virgin snow. Now I think I know what you tried to say to me. How you suffered for you sanity. How you tried to set them free.They would not listen they're not listening still. Perhaps they never will.





segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Friedrich Nietzsche - Implicações, influências e confluências: O Nascimento da Tragédia ou a Grécia e o pessimismo?

Dionísio (detalhe de mosaico em Antioquia.
No Ensaio de uma Autocrítica, apresentado em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche nos traz diversos questionamentos que apontam para o núcleo central do livro e a expectativa de uma profunda reflexão sobre a arte.
Sendo assim, meu propósito é tentar descrever um pouco do que penso ter apreendido sobre os aspectos que envolvem a estética nietzschiana, principalmente no que diz respeito aos pontos de vista que permeiam esse movimento que, através da arte, constitui o dizer algo. Sob a perspectiva de Nietzsche, refletir sobre as possibilidades da expressão artística, seus limites, a pretensão da “verdade”, em que medida ele aborda estas questões e quais as relações por ele estabelecidas.
Antes, porém, de entrarmos especificamente nas questões abordadas em O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, penso que é importante retomar a questão da “verdade” e de que modo ela é abordada por Nietzsche. Nesse sentido, na expectativa de uma contextualização, estarei me valendo de algumas leituras e interpretações.
Em A Gaia Ciência, por exemplo, percebemos um questionamento crítico sobre o valor da verdade e a noção do perspectivismo. Traz a reflexão de que em oposição ao conhecimento intelectualizado - em vista da vivência em sociedade com suas normas e ditames morais - o conhecimento é uma projeção do próprio ser para a interioridade, isto é, que sonda a vivência do próprio eu. Mediante o fato de que as palavras foram inventadas, elas não indicam um significado, mas sim impõem uma interpretação. Tudo é apenas superfície e, também, máscara, daí a necessidade de saber o que existe para ser interpretado.
Em O Nascimento da Tragédia, a arte é vista com este pano de fundo, ou seja, a crença de que não é possível viver com a verdade e que, por sua vez, a vontade de verdade já é uma pretensiosa suposição e, por isso, representa uma degradação. Nessa perspectiva, Nietzsche entende que a relação entre a arte e a verdade existe sempre uma discórdia. Segue daí a crítica ao platonismo e ao cristianismo, uma vez que o supra-sensível encontra-se em uma posição mais elevada e, portanto, retira da vida a sua força e a enfraquece. Podemos então pensar a arte como movimento contra o niilismo. E aqui, entender que Nietzsche está se referindo a um niilismo que teve sua origem na Grécia, mais precisamente a partir de Sócrates. A crítica se dá justamente pelo fato de que Sócrates, ao introduzir o universal, aponta para o aniquilamento do indivíduo. Temos então, de um lado, o ser que é dominado pelas “verdades”, de outro, a possibilidade de decisão que abarca ao mesmo tempo os deuses e os homens, o mundo e a terra. Para Nietzsche, aí reside o livre saber em que o homem se permite escolher, valorar, criar. Somente o homem e seu livre saber é capaz de decidir e determinar, ou seja, é o lugar da decisão.
Por sua vez, a crítica à cultura alemã ocorre pelo fato de que a arte tem como principal função tirar o olhar de horror das trevas e suscitar a aparência, isto é, suprimir as vontades e os prazeres através das distrações. Distrações que se fazem necessárias uma vez que a vida em sociedade exige, em nome da estabilidade social, uma opressiva regularidade de costumes. Em nome dessas “verdades”, a implacável repressão ao instinto de liberdade é necessária, uma vez que é perigosa para a manutenção da ordem estabelecida pelos Estados.
Após estas considerações e reflexões iniciais sobre o pensamento nietzschiano, cabe questionar: O que significa para Nietzsche o nascimento da tragédia no espírito da música? E em que medida as forças antagônicas de Apolo e Dionísio se implicam, entrelaçam e confluem?
Mediante a leitura do prefácio a Richard Wagner em O Nascimento da Tragédia, fica evidente que Nietzsche coloca Wagner no centro de suas esperanças em relação a uma arte que seja capaz de ir muito além de um mero passatempo. Nas palavras de Heidegger, em suas preleções sobre Nietzsche, podemos encontrar uma expressiva interpretação:


[...] O que cativou o jovem Nietzsche no homem de Richard Wagner e em sua obra foi esse arrebatamento que impelia para o todo a partir da embriaguez. No entanto, isso só foi possível porque algo no próprio Nietzsche veio de encontro a esse arrebatamento, aquilo que Nietzsche então denominou o dionisíaco. Todavia, como Wagner só buscava a mera intensificação do dionisíaco e a autodissipação em seu elemento, enquanto Nietzsche buscava agrupar as suas forças e conformá-lo, a fissura entre os dois também já estava previamente determinada. (2007, p.81).

Em Nietzsche, a arte deve desempenhar a função de elevar e estimular a vida. A vontade de poder, portanto, se revela como estimulante da beleza da vida, ou seja, é a própria manifestação da vida enquanto arte. Na concepção de Nietzsche o belo significa aquilo que agrada e podemos supor que o belo é aquilo que instaura algo, nos toca. Sob uma perspectiva psicológica, podemos pensar que está ligado aos nossos significados, ao que achamos de nós mesmos e do mundo. Diante disso, não é o objeto, a obra de arte que se revela a nós, ao contrário, o belo é requisitado por nós quando nos lançamos para além de nós mesmos. Em outras palavras, parece apontar para a idéia de que não é a vida que se revela a nós como verdade absoluta, mas nós que a significamos enquanto criação e construção. A arte, portanto, é entendida como uma força criativa do que vem a ser, uma potência criativa da própria vida. A transvaloração se dá justamente na vontade de poder que se manifesta através do estado corporal, ou seja, na vontade como paixão, como instinto que extravasa as forças vitais e as preserva. Mediante estas reflexões, é possível acrescentar aqui uma interpretação de Heidegger que parece aclarar estas afirmações:

[...] “Quando Nietzsche diz “psicologia”, ele sempre tem concomitantemente em vista o estado corporal (o elemento fisiológico)”. (2007, p. 88).
Através da produção artística, portanto, podemos visualizar a essência do artista e, por esta razão, na compreensão de Nietzsche não podemos ignorar que a origem da arte se dá na tragédia, através do mito e da música. Nessa perspectiva, entende que o mundo e a existência não podem parecer justificados a não ser como fenômenos estéticos.
Apolo, deus do sonho, das artes plásticas, está relacionado ao aspecto formador de Estados e parece apontar para o princípio de individuação. Podemos estabelecer aqui a relação entre a imagem e o conceito, o conhecimento e a verdade. Dionísio, por sua vez, associado à música, fala um idioma universal e mantém com ela uma relação parecida com as coisas individuais. Aqui, a relação que se estabelece é com a alegria primitiva, com o abismo e o caos. Na embriaguez dionisíaca, porém, podemos encontrar o sentimento de elevação, de força e de plenitude, isto é, a capacidade de se lançar para além de si. Essa universalidade da música, contudo, não se dá de modo conceitual, como nas artes plásticas e na tragédia, por exemplo, justamente por isso a música se diferencia das demais expressões artísticas. Com isso, entendemos que Nietzsche vê na música a expressão do próprio mundo. Nas palavras de Nietzsche:


[...] A tragédia absorve em si o orgiasmo supremo da música: desse modo leva a música diretamente à perfeição, entre os gregos como entre nós, mas ela lhe acrescenta o mito trágico e o herói trágico que, semelhante a um formidável titã, toma sobre seus ombros o fardo do mundo dionisíaco, fardo do qual nos livra.” (2006, p. 146).

Assim, somente quando o compositor sabe exprimir na linguagem universal os elementos da própria vontade, a melodia está repleta de expressão, isto é, ela instaura algo. Nesse sentido, a arte dionisíaca exerce alguns efeitos sobre os recursos apolíneos. Para Nietzsche, a música confere ao mito trágico a expressão do conhecimento dionisíaco, pois a música clarifica o mito. Vejamos o que ele nos diz:

[...] A música, em contrapartida, confere ao mito trágico uma significação metafísica tão penetrante e tão decisiva que, sem essa ajuda única, a palavra e a imagem teriam ficado para sempre impotentes para poder atingi-la. E é especialmente graças à música que o espectador da tragédia fica invadido por esse pressentimento de uma alegria suprema, para o qual conduz um caminho de ruína e de negação, de modo que acredita ouvir a voz mais secreta das coisas lhe falar inteligivelmente do fundo do abismo.(2006, p. 147)

O nascimento da tragédia, especificamente da tragédia musical, se dá por esta afinidade entre o mito e a música, Apolo e Dionísio, uma vez que a gênese do mito trágico é justamente esta, nas palavras de Nietzsche:

[...] Ele compartilha com a esfera artística apolínea da plena alegria na aparência e na contemplação e, ao mesmo tempo, nega essa alegria e encontra satisfação ainda superior no aniquilamento do mundo visível da aparência.” Esse mundo visível da aparência é a expressão do conhecimento dionisíaco pelo qual o homem se defronta com o abismo, nega a si mesmo, desaparece e reaparece num constante vir a ser. (2006, p. 166).
Na compreensão de Nietzsche, a arte dionisíaca é captada mediante a possibilidade de significação proporcionada através da dissonância musical. Nesse sentido, a alegria primitiva presente em Dionísio é, diante da dor e do caos, a fonte geradora da música e do mito trágico. Podemos aqui, entender de que modo Nietzsche caracteriza os efeitos da dissonância na tragédia:


[...] Se entendemos finalmente, pois, o que significa, na tragédia, querer contemplar e ao mesmo tempo aspirar além dessa contemplação, esse estado necessitaríamos caracterizá-lo com relação ao emprego artístico da dissonância, a saber: Que queremos ouvir e ao mesmo tempo aspiramos para além do que ouvimos. Esta aspiração para o infinito, esse bater asas para além do desejo, no momento em que sentimos a maior alegria da clara percepção da realidade, nos relembra que nesses dois estados devemos reconhecer um fenômeno dionisíaco que, sempre e sem cessar, nos revela ao eflúvio de uma alegria primitiva no jogo de criar e de destruir o mundo individual, de maneira semelhante à Heráclito(...).” (2006, p.168)

Aqui, entendo que encontramos as raízes do incomensurável, que é representado pelo jogo artístico e se manifesta no desejo de plenitude no humano. É possível constatar, também, que freqüentemente Nietzsche faz referência a Heráclito, o que revela uma identificação com o pensamento heraclítico1 . Então, podemos considerar que o lógos originário - presente em Heráclito, que é derivado do legein e significa recolher - parece dizer justamente isso: a ação de recolher o múltiplo para constituir o um. O resultado da ação da colheita é o colhido, isto é, o lógos. Isto me remete a dois fragmentos de Heráclito que parece nos dizer algo, são eles: Fragmento XXII: “Conjunções: completas e não completas, convergente e divergente, consonante e dissonante, e de todas as coisas um e de um, todas as coisas”. (2002, p. 200) , e ainda o Fragmento XVI, que parece aclarar os limites do lógos e a sua real possibilidade. Diz apenas: “Aproximação” (2002, p.199).
Sob este aspecto, parece apontar para o abismo humano e o modo como Dionísio se faz lembrar através de Apolo. Através da arte, o alegre delírio da arte, esses dias de transfiguração que evocam a lembrança do princípio de individuação e, justamente aí, reside o fenômeno artístico, ou seja, através destes dois instintos da arte. Sob este aspecto Nietzsche profere:
[...] Somente a estranha mistura que forma a característica das emoções dos sonhadores dionisíacos evoca sua lembrança – como um bálsamo salutar relembra o veneno mortal – quero dizer, esse fenômeno do sofrimento que suscita o prazer, a alegria que arranca sons dolorosos. Da mais elevada alegria brota o grito de horror ou a queixa ardente de uma perda irreparável. (2006, p.35)

Sob a perspectiva da linguagem, que é uma especificidade em Nietzsche, proponho aqui uma reflexão com base em estudos mais recentes. Mediante a leitura do artigo intitulado O Olhar e a Voz em tempos virtuais de autoria de Mário Fleig
[1], penso que é possível estabelecer aqui algumas relações, quais sejam: se considerarmos que essa dissonância musical, presente na representação de Dionísio, é um signo que confunde prazer e dor, vida e morte, então ela é o lugar do negativo, do insondável humano, está associada à morte e ao ideal de plenitude. Por sua vez, a tragédia que está associada à Apolo e estabelece a relação entre a imagem e o conceito, pode ser entendida como o significante da arte, uma vez que proporciona as operações de substituição e deslocamento, constituindo a metáfora. Nesse sentido, retomando Nietzsche, me parece que é justamente aí que a arte dionisíaca exerce alguns efeitos, ou seja, instaura algo sobre os recursos apolíneos.
Nesse sentido, penso que existe aqui, uma aproximação com o pensamento freudiano, no que se refere às pulsões. Freud desenvolveu duas descrições dos instintos básicos, o primeiro modelo descrevia duas forças opostas, a sexual ou, de modo geral, a erótica, fisicamente gratificante e a agressiva ou destrutiva. Estas forças são vistas como mantenedoras da vida ou como incitadoras da morte ou destruição. Este antagonismo básico não é necessariamente visível na vida mental, pois a maioria de nossos pensamentos e ações é evocada não por apenas uma destas forças instintivas, mas por ambas em combinação.
Aqui, a combinação artística, que se manifesta na tragédia grega, é possível através da imitação do sonho apolíneo e da embriaguez dionisíaca. Assim, considerando todo o artista um imitador, Nietzsche nos diz:


[...] É como tal que devemos considerá-lo quando, exaltado pela embriaguez dionisíaca até a mística renúncia de si mesmo, se prostra solitário, longe dos coros em delírio, e é então que, pela potência do sonho apolíneo, seu próprio estado, isto é, sua unidade, sua identificação com o fundo mais íntimo do universo, lhe é revelado numa alegoria do imaginário onírico.” (2006, p. 33).

Assim, na medida em que refletimos o pensamento Nietzschiano, somos instigados ao questionamento e provocados em nossos próprios abismos. Seus aforismos nos remetem ao pensamento mítico de onde parece aflorar as origens do incomensurável e do desejo de plenitude no humano; contudo, a cultura ocidental, com sua pretensiosa megalomania, tentou decifrar estes símbolos e signos por intermédio do conhecimento e, assim, traduzi-los em verdades absolutas. De modo antagônico, sua crítica acirrada nos faz pensar, de um lado, o modo como as “verdades” se estabeleceram; de outro, a necessidade que temos da verdade como fundamento para a valoração da vida enquanto criação, mesmo que essa verdade corresponda apenas a uma “ilusão”.
Enfim, a vida que se move oscilando entre a criação e a destruição, a alegria e a dor, o bem e o mal; eis aí a grande obra de arte. Por esta razão, entendo que as significações e o sentido que criamos para as coisas, para as pessoas e para o mundo, estão intimamente ligados a essa idéia. O próprio Nietzsche revela que seu sofrimento aflora na justa proporção em que pesam a superabundância de vida, isto é, que reclama uma arte dionisíaca em oposição a uma visão unicamente trágica da vida. É nesse sentido, portanto, que o homem dionisíaco se deixa viver entre o que é terrível e inquietante, mas também se permite interpretar, construir e criar.
Assim, apesar de sugerir um exacerbado individualismo, o pensamento nietzschiano traduz as possibilidades e as limitações da linguagem em todas as suas formas de expressão. Nesse sentido, é possível um posicionamento crítico em relação a nós mesmos, a alteridade, o outro e o mundo. Esse parece ser o nosso horizonte: a capacidade de significar e criar sentido que, por sua vez aponta para a possibilidade da responsabilidade, do comprometimento e do amor.
Então, permito-me finalizar propondo uma reflexão sobre a ambigüidade que somos, o nosso desejo de plenitude que jamais se esgota e os limites do incomensurável no humano. Assim, através das palavras de Nietzsche, re-visitar sua reflexão sobre a dissonância tornada criatura humana, a saber:


[...] e que é o homem, senão isso? – para poder viver essa dissonância necessitaria de uma magnífica ilusão que escondesse dela mesma sua verdadeira natureza sob um véu de beleza. Essa é a verdadeira intenção artística de Apolo, sob cujo nome reunimos todas essas inumeráveis ilusões de bela aparência que tornam, a cada dia, a existência digna de ser vivida e nos incitam a viver o instante que se segue. Ao mesmo tempo, porém, desse fundamento de nossa existência, do substrato dionisíaco do mundo, não deve penetrar na consciência do indivíduo humano senão precisamente a exata medida com a qual é possível ao poder transfigurador apolíneo triunfar por seu turno de maneira que esses dois instintos de arte sejam obrigados a despregar suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo a lei de uma eqüidade eterna. (2006, p. 171)



Referências:

COSTA, Alexandre, Heráclito: Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro, DIFEL, 2002.


FLEIG, Mário, O Olhar e a voz em tempos virtuais, Revista Filosofia Unisinos, 7(3):238-255, set/dez 2006.


HEIDEGGER, Martin, Nietzsche, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, O Nascimento da Tragédia, Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Obras incompletas, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1979.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, A Gaia Ciência, Coleção Obras do Pensamento Universal, São Paulo, Editora Escala, 2006.



[1] Mario Fleig possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia N Sra Medianeira (1973), graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1982), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Metafísica, atuando principalmente nos seguintes temas: Heidegger, hermenêutica, ontologia, linguagem, ética e psicanálise. Psicanalista, analista membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos.