sábado, 20 de agosto de 2011

Te tornas eternamente responsável por aquele que cativas.


Recentemente lendo uma colunista conterrânea, cujas crônicas aprecio, o recorte reflexivo proposto era precisamente este: “És eternamente responsável por aquele que cativas”. Como um questionar para esta afirmação, ela traz como contra-argumento uma possibilidade própria de escolha: “me concedo o direito de não me sentir responsável por aquele que cativo”. Acrescenta ainda, o que justifica a sua autenticidade, que o sentimento diante desse outro por ela “cativado” é de gratidão e envaidecimento, “mas responsável é um tantinho demais.”
Esclareço desde logo, que o objetivo não é aqui criticar a nossa cronista, ao contrário, a proposta é trazer, como contraponto, um outro viés reflexivo. Compreendo e respeito este “ponto de vista”, sobretudo por entender a dimensão que tem hoje o significado da palavra liberdade para os indivíduos. Também pelo fato de que estou convencida de que toda a compreensão somente é possível a partir dos “pré-conceitos”, quero dizer, algo presente em nossas crenças (aquilo que aceitamos como verdade). Nesse sentido o que nos conduz a interpretação não está dissociado do contexto mesmo em que estamos inseridos enquanto intérpretes.
Meus leitores podem estar questionando: afinal, onde ela quer chegar com estas afirmações?
Sabemos que Antoine de Saint-Exupéry, em seu livro “O Pequeno Príncipe”, fez-se conhecido sobretudo por esta reflexão que diz: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”. Este livro, que somente teve a sua publicação na frança em 1945, em virtude do exílio de Exupéry nos EUA, oferece, entre tantos sentidos possíveis, a possibilidade de mostrar uma profunda mudança de valores. O autor parece provocar o seu leitor, pois sugere o quanto podem ser equivocadas as nossas interpretações e julgamentos diante das coisas, das pessoas e do mundo. Sob este aspecto, o autor nos faz pensar em que medida estes julgamentos mesmos podem nos conduzir a solidão.
Num tempo em que já não se fala de valores como o amor, senão de um modo pragmatista, mas que por sua vez se prega a ideia do “politicamente correto”, contraditoriamente essa afirmação de Exupéry soa aos indivíduos, no mínimo, sujeita a contestações.
Entretanto quando reflito na esteira de Lévinas, por exemplo, pensar este outro que me olha e que por sua vez me interpela, ele o faz independente do meu querer. Não tenho domínio e controle, pois ele me chega, sou abordada por ele. Vemos aqui a dimensão da liberdade de que nos falava Sartre: “estamos condenados a ser livres”, livres para escolher.
No entanto, sair do “senso comum” significa sobretudo refletir com rigor sobre determinados recortes nas falas dos sujeitos. Sob estes aspectos, se tirarmos a dimensão da responsabilidade que não está dissociada da liberdade, toda e qualquer possibilidade de liberdade torna-se solipsista, ou seja, como uma mônada fechada em si mesma. Para escaparmos a esse senso comum, é preciso sobretudo um retorno sobre si mesmo, ou seja, um olhar que consegue ver para além do meramente eu mesmo. Com esse olhar, é possível, vejam, (diante da contingência dos sujeitos não posso afirmar que aconteça de modo necessário) mas é possível que suscite a consciência da incomensurabilidade que há em nós mesmos. Esse indizível, sempre e a cada vez suscitado por nosso desejo de vida, é o que nos lança alhures, nos move em direção ao futuro rumo a realização de nossos projetos.
Neste ponto de minhas argumentações pode parecer contraditório, pois falar de sujeitos requer a compreensão de que há em cada indivíduo as suas particularidades e por isso mesmo ele é e será sempre singular. Contudo, o paradoxo da nossa condição de sujeitos é que em cada singularidade há a mesma dimensão incomensurável, quero dizer, sob este aspecto, de uma maneira ou de outra, é o que nos faz idênticos. Este rasgo em nós, essa falta mesma que nos lança rumo aos nossos projetos, aspirações e sonhos, já não nos torna diferentes desse outro que nos interpela e que cativamos. Não. Sob este aspecto somos iguais e não há o que me torne melhor ou pior do que esse outro que me interpela.

Eis-me aí, diante da minha liberdade de escolher, tornar-me ou não responsável. Somos livres e, portanto, somos o resultado de nossas escolhas.

Sendo assim, consciente da própria facticidade, minha expectativa é de que tenha conseguido provocar um contraponto reflexivo. Proponho então que pensemos, talvez além da frase que deu origem a estas questões, também outra presente no mesmo livro, que diz: “Mais les yeux sont aveugles. Il faut chercher avec le coeur.” Ou seja, Mas os olhos são cegos. É preciso procurar com o coração.

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