sábado, 9 de abril de 2011

Tragédias contemporâneas: (im)possibilidade de purgação?

Quando as tragédias nos chegam da natureza costumamos afirmar que são catástrofes; o que dizer, então, quando essas tragédias mesmas são provocadas por nós "seres humanos”? Além do significado das palavras massacre, chacina e matança, quais significantes elas nos suscitam?


No teatro grego tínhamos na representação trágica o sentido de instaurar algo. Aristóteles na Poética afirmava que “a tragédia é a imitação de uma ação séria e concluída em si mesma... que, mediante uma série de casos que suscitam piedade e terror, tem por efeito aliviar e purificar a alma de tais paixões.” Sabemos que a paixão (do grego pathos) quando exacerbada, é o que hoje conhecemos por patologia. Temos aqui a significação do que seja, para Aristóteles, a catarse (do grego) palavra utilizada em diversos contextos como na tragédia, posteriormente na medicina e psicanálise, que significa "purificação", "evacuação" ou "purgação." Segundo o filósofo, para suscitar a catarse era preciso que o herói passasse da dita para a desdita, ou seja, da graça para a desgraça. E isso não poderia ser por acaso, e sim por uma desmedida, ou seja, por uma ação ou escolha mal feita do herói. Para o filósofo grego, portanto, se um homem bom passa da má para a boa fortuna, nós não sentiremos terror; se um homem bom passa da boa para a má fortuna, nós ficamos com pena, e não sentimos compaixão nem terror; se um homem mau passar da boa para a má fortuna, nós ficamos felizes da vida; e se um homem mau passar da má para a boa fortuna, nós sentimos repugnância.


Neste ponto, meus leitores podem estar questionando: mas afinal, o que Aristóteles teria a nos dizer ainda hoje? Meu desejo é salientar que em nossos dias o massacre, a chacina e a matança são palavras que parecem apenas informar um dado estatístico. Parece que banalizamos não apenas o seu significado literal, mas ignoramos suas implicações significantes. Os noticiários nos chegam como avalanches e, aturdidos, já não damos conta de decifrar essa lógica que de tão cotidiana não mais parece invertida. Compreender o que se passa, me parece, está além da perversão e beira a psicopatia: motoristas que lançam seus carros contra ciclistas, jovens que invadem escolas e disparam tiros contra crianças... crianças alvejadas em suas cabeças! Sinto náusea desse modelo estatístico que mostra do mesmo modo que oculta, pois acaba banalizando o perverso enquanto sintoma. Se ontem as tragédias suscitavam, como acreditava Aristóteles, a catarse da alma como forma de expurgo contra essas paixões, hoje a ausência de um referente Outro que faça laço com a ideia de modelo, enquanto exemplo a ser seguido, joga o indivíduo em uma espécie de constante ameaça. Nos indivíduos movidos pela “certeza”, o que se passa é precisamente isso, quero dizer, o desejo é o próprio sintoma: eliminar a ameaça que é o outro.


De sorte que temos, ainda hoje, autênticos heróis que, a exemplo desta última quinta-feira, ficou evidente na pessoa do sargento Alves que deu fim ao trágico naquela escola do Rio. A ação de Alves remonta o pressuposto de que herói é aquele indivíduo que coloca em risco a própria vida em favor do outro, do bem comum. Diferente, portanto, do fetiche por ídolos em que o herói aparece nas figuras artísticas (cantores, atletas). E por mais que a realidade nos mostre que a figura do herói (a exemplo desse sargento) parece escassear, exemplos como esse suscitam em nós a esperança na cria humana, a crença de que a humanidade ainda tem e faz sentido. E essa mescla que sentimos entre a repugnância do ato criminoso e o regozijo na eliminação da causa, parece remontar o pressuposto aristotélico de que o trágico pode mesmo provocar em nós a purgação do mal em prol do bem comum. Eis aí um belo antídoto contra a possibilidade de desencantamento do mundo.





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