Felizmente chegou a primavera, mas
a temperatura ainda insiste em permanecer “gelada” aqui no Sul. Sobre o telhado
da varanda observo a chuva mansa, melodia doce e intensa, que nos últimos dias não
cessa de se fazer notar. Presença. Hoje
uma inquietação que não ocorre apenas com o frio destes dias mais cinzentos. Há
ainda uma ausência mesma e sempre que não se deixa pronunciar. Nuances. Preciso brotar - como as flores
da nova estação - dizer-te algo e quem sabe assim também dizer-me. Renascer talvez como todo novo ciclo e a
cada instante. Na adega escolho um vinho especialmente reservado para os dias
não muito amenos. Sirvo uma taça, observo sua cor, sinto os aromas e finalmente
experimento o seu sabor revigorante e encorpado. Reflito agora sobre a vida e
tudo o que permanece, além dos pequenos gestos e devaneios tantos
que nem sempre nos tornam dignos de sermos considerados pessoas. Será apenas superfície?
Súbito receio e esse tremor que mobiliza por que em certo sentido é em minhas
entranhas que sinto. Saudades e até mesmo uma nostalgia do que não vivi é quem
sabe o reflexo desse meu apaixonado desejo de dizer-te além. Outra vez pulsar um
pouco mais do que sou capaz, talvez por esse meu anseio sempre pronto a espreitar
a outra face - contínua e mesma - que também somos. Silêncio. Somente aí escuto os teus murmúrios e redescubro na vida
esse algo ainda plausível em nós. E sinto os sinais a sondar este eu que ainda não é - plenitude - minha vida. Escolho
agora essa verdade e creio - apesar das indizíveis sombras com suas nuances nem
sempre visíveis - pois sendo minha, ela é antes o meu possível. Resiliência afinal, como a primavera que
novamente se mostra - aqui e no tempo - com as suas flores e revigorada urgência
de futuro. E somente aqui, no aconchego da habitação,
nos encontramos e vivemos todos: tu, eu mesma e o nosso inacabado esforço
infinito.
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“A ironia, como um momento
dominado, mostra-se em sua verdade justamente nisso: que ela ensina a realizar a realidade, a
colocar a ênfase adequada na realidade. Daqui não se segue, de jeito nenhum, a
conclusão bem saintsimoniana de que se deva idolatrar a realidade, ou negar que
há em cada homem, ou deveria haver, uma nostalgia por algo mais alto e mais
perfeito. Mas esta nostalgia não pode esvaziar a realidade, muito pelo
contrário, o conteúdo da vida tem de ser um verdadeiro e significativo momento
numa realidade mais alta, cuja plenitude atrai a alma.” (Sören Kierkegaard, in:
O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates)
“Si nous voulons guérir le
désespoir qu’est l’effet du blasement, nous devons nous simplifier et reprendre
confiance dans la spontaneité du coeur.” (Jankélévitch, L’Ironie)