sexta-feira, 23 de abril de 2010

Do Livro: "A Hora da Estrela" - Clarice Lispector

Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever. (LISPECTOR, 1999, p. 10)
Esse dizer parece justificar a seguinte afirmação de Clarice:
"Já que se há de escrever, que, pelo menos, não esmaguem -com palavras- as entrelinhas."

Lispector - A linguagem na sua dimensão incomensurável


Clarice soube bem apontar a dimensão de incomensurabilidade que nos vemos envolvidos quando do encontro com o próprio eu. De fato, pois é a partir daí, quando pressupomos olhar para a alteridade que podemos compreender o que se passa. Deixemos que ela fale:

"Ouve-me. Ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e, sim, outra coisa. Capta a "outra coisa" porque eu mesma não posso." (Clarice Lispector)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Albert Camus - O Mito de Sísifo/Dostoiévski - Os Demônios

Minha proposta é que possamos refletir um pouco sobre a literatura nos contextos entre os séculos XIX e XX. Dois autores de peso, acredito, podem ilustrar bem as questões que proponho, são eles: Fiódor Dostoiévski e Albert Camus. Uma das questões que pretendo abordar refere-se ao desencantamento do mundo enquanto possibilidade ou não de suicídio. Nesse sentido, versaremos um pouco sobre a idéia de destino e sua relação com a possibilidade de liberdade.
De um lado, temos Dostoiévski que no séc. XIX questiona, em seus personagens, a existência ou não de Deus. De outro lado, no contexto do séc XX, Albert Camus que diante da "morte de Deus" questiona sobre o absurdo da existência.
Sendo assim, será em "Os Demônios" que Dostoiévski trará o personagem Kiríllov em constante confronto entre razão e fé. Cabe citar um momento extremamente significativo em que Kiríllov enuncia a contradição entre a fé, ao afirmar: "Deus é necessário, por isso deve existir", e a razão, pois diante das barbáries no mundo, constata: "mas eu sei que ele não existe nem pode existir."
Sabemos que na trama Kiríllov se suicida. E por que ele se suicida? Precisamente pelo fato de que a simples idéia da impossibilidade de transcendência, torna-se insuportável. O desamparo de uma razão que não dá conta de si é posta aqui em evidência.
Já no contexto do séc. XX, Albert Camus traz o Mito de Sísifo para ilustrar a solidão do homem diante do absurdo. Deus enquanto o referente Outro está morto e nesse sentido tudo é permitido. A questão que se coloca na trama é: a vida tem um sentido suficiente para que não nos matemos?
Sabemos que Sísifo, negando os deuses e a morte, é condenado a carregar uma pedra montanha acima por toda a eternidade. Toda a vez que ele atinge o cume, a pedra rola montanha abaixo. Sísifo precisa retornar. O sentido passa a ser precisamente o "sentimento de absurdo" frente a existência. Para Camus o absurdo é um "mal do espírito."
Como nos é dado perceber, Camus retrata o tempo do tédio, o desespero do "sem sentido". Contudo, por mais contraditório que possa parecer, é precisamente a consciência de que não há sentido que faz emergir um "novo sentido." Eis a razão pela qual Sísifo não comete o suicídio. É preciso responsabilizar-se por si, mas é também necessário dar conta de si. Sísifo está só, preso a sua certeza.
Questões para refletirmos:
Podemos perfeitamente pressupor que no séc. XIX o sagrado, enquanto um referente terceiro, não estava no indivíduo. Dito de outro modo, há ainda o Outrem enquanto referente responsável pela instauração da lei no campo simbólico do indivíduo. Hoje, o sagrado está em nós, ou seja, somos o próprio fundamento. Percebemos aqui a dimensão da ameaça que cai sobre os indivíduos. As relações se tornaram duais, isto é, ou eu ou ele.Com isso, surgem as estratégias para se garantir (ameaças) a qualquer preço. Sob estes aspectos será que é possível pressupor condições de estabelecermos relações com o outro sem que se torne uma relação de disputa?
Em nossos dias, nem mesmo a idéia da globalização ou os sistemas de rede, somente para citar dois exemplos, são capazes de nos libertar da solidão. Parece que nunca estivemos tão próximos uns dos outros e no entanto, tão solitários.
Será esse o desencantameno do mundo pelo qual Camus se refere? O tédio como uma espécie de desdobramento, redução de tudo a uma única dimensão, um único olhar? Qual a relação que podemos estabelecer com uma espécie de expansão da condição humana pensada na pura horizontalidade? Em que medida prevalece, nas relações, a idéia da paridade em detrimento da disparidade? É possível pressupor a ausência do outrem enquanto referência simbólica?
Em tempos de desresponsabilização qual a conotação que atribuímos para a palavra liberdade? Somos livres e nos responsabilizamos pelas próprias escolhas ou tudo é necessário(ideia de destino)?
Ora, o cotidiano nos mostra que nunca fomos tão livres e, no entanto, pouco libertos, pois a idéia da horizontalidade pressupõe que haja um consenso, uma simetria. Daí a impessoalização e a desresponsabilização enquanto forma de discurso. Nesse sentido Camus foi perspicaz, pois é nas entrelinhas do dito que o "mal do espírito" pode vir a ser... Eis o "espírito do nosso tempo!"

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Clarice Lispector


Com estas palvras Clarice parece traduzir, nas entrelinhas, alguns fragmentos do que pode ser dito.
Sendo assim, cabe-nos questionar: o que vemos nas entrelinhas? "Une femme l'amoureuse pour la vie"... intensa...
São fragmentos que nos falam o tempo todo sobre o que seja a "paixão" enquanto sinônimo de "interioridade".
Alguns descreveriam como uma escrita indefinível. Outros diriam que se trata de um terremoto, uma certa "loucura"...
No entanto, me parece muito mais tratar-se de uma mistura que resulta do ato reflexivo e emerge como uma espécie de confissão... seja em prosa, poesia, filosofia... pouco importa a definição que se queira dar, pois o que de fato percebemos é que Clarice atinge o âmago da psique humana...
Sob este aspecto, Kierkegaard parece ter mesmo razão ao afirmar que a mulher é mais "sensual" e por isso se angustia mais do que o homem. Perdoem-me os preconceituosos, mas se de um lado toda a nossa estrutura fisiológica conspira para que sejamos mais angustiadas, de outro, parece que somos mais sensíveis ao silêncio, ao vazio interior enquanto "desejo" (sempre um desejo) de completude.
Silêncio, vazio, turbilhão de contradições? Não importa. É sempre um desejo que marca a falta e que nos permite dizer o que, por vezes, parece insondável. Sob este aspecto Clarice foi extremamente sensível ao afirmar: "O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós".

Texto de Clarice Lispector

Olhe para todos ao seu redor.
Do livro "Uma aprendizagem ou pequeno Livro dos Prazeres", este texto também poderia se chamar: Persona.
Por quê? Talvez por que "falar do que realmente importa é considerado uma gafe"... ou até mesmo quem sabe, "para que no fim do dia possamos dizer: pelo menos não fui tolo"... ou um idiota, cujo "olhar inocente" beira sempre, aos olhos dos outros, a demência... Sob este aspecto, também Dostoiévski foi brilhante quando da sua criação: "O Idiota".
Mas o que é que de fato produz uma consciência crítica o suficiente para que deixemos cair as próprias máscaras?
Somente quem tem a coragem de voltar-se sobre si mesmo, torna-se crítico o suficiente para dar-se conta das sujeições que estamos expostos. Contudo, é precisamente isso que a criticidade produz: consciência dos próprios limites. Com isso, a vida passa a ser vivida com um novo olhar. É como se houvesse uma espécie de re-nascimento.
Estranheza, entretanto, é o que vemos... tanto no que diz respeito ao que está aí posto, como também o outro que nos olha com uma certa perplexidade de quem está preso às certezas...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Jacques Lacan: Seminário (4/7)

Para que haja a compreensão sobre o modo como Lacan entende a estruturação da linguagem, inicialmente me parece importante destacar o que ele considerou como sendo os "três regístros": Real, Simbólico e Imaginário.
Segundo Lacan, a mãe é a responsável pela incidência da língua materna e é também o fundamento para onde se dirige o amor. Frente a essa afirmativa, vejamos em que medida consigo articular estas questões:
Talvez, possamos iniciar com a seguinte questão: Em que medida a mãe consegue operar, no bebê, a passagem da condição alienante e narcísica, para o regístro do simbólico que é o campo da linguagem e do significante?
Segundo Lacan, de um lado temos o sujeito do inconsciente onde se situa a instância simbólica. Aqui, intervenção na psicanálise é para situar o Eu como instância de desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo. É o momento do Estádio do Espelho, em que a mãe dá a identificação e a autenticação ao bebê. É o instante da perda (idéia de unicidade com a mãe) e também o momento da instauração da Lei (encontro com o Pai).
De outro lado, temos o Eu que se situa no regístro do Imaginário, juntamente com sentimentos como o amor, o ódio, a agressividade, etc. É o lugar das identificações e também das relações duais.
Lacan reafirma aqui a divisão do sujeito, pois o Inconsciente seria autônomo com relação ao Eu.
Na estruturação do inconsciente está a linguagem que emerge como metáfora para a interdição do incesto, ou seja, o desejo pela mãe. O simbólico marca, nesse sentido, a ligação do desejo com a lei (que é o Pai) e a falta (que é a mãe). Importante ressaltar que, segundo Lacan, "a lei e o desejo recalcado são uma só e a mesma coisa". Dito de outro modo, o simbólico opera de modo simultâneo: no instante em que emerge a Lei, o desejo pela mãe é então recalcado para fundar o sujeito desejante. Sendo assim, para que a autonomia da função simbólica possa operar, é preciso o encontro com o Grande Outro (Pai) que antecede o sujeito enquanto desejante da mãe. Sob este aspecto o sujeito somente se constitui como desejante através deste Outro). Neste ponto se instaura o discurso (linguagem) como metáfora. Segue daí o aforismo de Lacan que diz: "o inconsciente é o discurso do Outro." Por isso "o desejo é o desejo do Outro".

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Lacan - Falasser-Sexualidad-subtitulado

Intimamente ligadas a linguagem, Lacan apresenta algumas questões que insistentemente nos acossam e nos instigam pela busca de alguns significados em suas teorias.
Inicialmente cabe questionar o que seja, para Lacan, o "real" e qual a relação que podemos estabelecer com o nosso "desejo" de plenitude? Se o real "padece de significante" como nos afirma Lacan, então em que media o gozo está ligado ao "instante" da plenitude perdida? Em que sentido é necessário primeiramente perder (idéia da completude) para poder ganhar (instauração do desejo)? Qual a relação que podemos estabelecer entre o "real" e a "linguagem"? Se o real está intimamente ligado a fala, então em que medida a linguagem é um modo metaforizado de inscrição do impossível?
Uma pista, talvez, encontremos no seminário 24, "A emergência de um impossível", em que Lacan afirma: (...) "enunciei, pondo-o no presente que não existe relação sexual".
Sob este aspecto, Lacan parece afirmar que não há proporção entre o que o sujeito busca e aquilo que é buscado. Sob este aspecto, o nosso "desejo de completude" que não cessa de se inscrever e por isso se repete, está sempre à luz do horizonte do próprio desejo. Nesse sentido é possível afirmar que o O "real" é o impossível. Para Lacan o real está intimamente ligado ao que ele denominou "Objeto a" (objeto ausente). O desejo nos move precisamente pelo fato de que sendo sempre um horizonte inatingível, uma falta a ser metaforizada(fala), instaura a possibilidade da máxima: "ne céde pas sur ton désir". Isso que se repete é precisamente, mesmo que por um "instante", o gozo, "resto incomensurável" da idéia da plenitude.

Jacques Lacan - El lenguaje no sirve

Em que media, para Lacan, a linguagem é sempre insuficiente? Em que consiste falar? Se nesse movimento que constitui o dizer algo, há a "suposição" de dizer o verdadeiro, então como é possível falar e não dizer a "verdade"? Uma vez que a linguagem não se deixa pronunciar em sua totalidade, em que sentido sempre há algo que nos escapa? Em que medida a linguagem, enquanto metáfora, é o modo de substituição e transferência no campo de nosso desejo?
Seguindo a formulação de Freud sobre o "inconsciente", talvez possamos afirmar que ele foi extremamente sensível ao que opera na linguagem sem que nós mesmos saibamos. Antes de Freud, Kierkegaard e Nietzsche foram também visionários, na medida em que propuseram a quebra da pretensão da racionalidade. O Eu como instância de desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo.